Visões sobre a natureza de Jesus


Quem se depara hoje com os quatro evangelhos canônicos, que servem de base para as doutrinas da maioria das religiões cristãs, muitas vezes não tem noção da movimentação de ideias e possibilidades que se estabeleceram nos primeiros quatro séculos de cristianismo, quando finalmente a Igreja de Roma, amparada na força do Império Romano, chegaria a definir os escritos de Lucas, Marcos, Mateus e João como principais em detrimento de outros documentos cristãos. As muitas reflexões e hipóteses levantadas pelos seguidores ditos primitivos de Jesus acabariam por formar um rico acervo teológico que pode ser tranquilamente estudado por interessados no assunto em acréscimo aos textos considerados oficiais.

Uma dessas ideias começaria a ganhar destaque já no século II da Era Cristã, com os docetas, seguidores de uma visão que entendia que, sendo Jesus de natureza divina, não podia ter a mesma constituição das pessoas normais. Logo, o seu nascimento, o corpo e as sensações que sentia não eram reais, isto é, não passavam de uma aparência de realidade. O docetismo parte das ideias de Marcião, um filósofo e pensador cristão, profundo estudioso dos escritos de Paulo de Tarso. Ele se notabiliza por defender a ideia de que o deus hebraico, ao se mostrar vingativo e por vezes cruel, não poderia ser o mesmo que conceberia Jesus e o ofereceria à humanidade.

Sendo assim de origem totalmente divina, o Cristo seria uma criatura diferenciada de todos os demais seres, os atos de sua vida apenas se revestindo de uma aparência de acontecimento real para entendimento dos mortais. As ideias de Marcião acabariam por despertar muitos seguidores a tal ponto que se tornou bastante influente em Roma, onde conseguiu divulgar sua visão através de uma vasta obra escrita. Bispos influentes da Igreja da época, como Irineu de Lião e Ignácio de Antioquia, se dedicaram também a uma relevante produção teológica para refutar os textos de Marcião, preservando o consenso até então formado pela maioria das igrejas cristãs.

Uma outra ideia teológica levantada pelos cristãos primitivos é o arianismo, que nada tem a ver com as doutrinas de superioridade racial que se espalharam pela Europa a partir do século XIX. O nome vem de seu principal formulador e defensor, Ário, um presbítero de Alexandria do século IV, que negava a existência da consubstancialidade entre Jesus e Deus, ou seja, para ele, embora uma criatura especial, preexistente à própria criação do mundo, o Cristo não se confundia com o criador e não era constituído da mesma natureza divina. Para Ário, Jesus seria algo situado entre Deus e os homens, uma espécie de semideus, que não se enquadraria em nenhuma das duas naturezas, nem a divina, nem a humana. Como dado interessante, em boa medida o pensamento de Ário seria divulgado através de canções populares, o que acabaria por estender seu pensamento para além do campo dos estudiosos eclesiásticos e aproximá-lo dos cristãos comuns.

Por isso (e por outros fatores) a doutrina ariana seria causadora de grandes debates entre os bispos e religiosos da igreja, não raro redundando em conflitos que extrapolavam a esfera religiosa e se tornavam sérias questões diplomáticas envolvendo líderes e governantes a favor ou contra suas ideias. O fato é que o arianismo ganharia força e de alguma forma abalaria a unanimidade das igrejas cristãs, o que culminaria na convocação de um dos mais importantes concílios da história da igreja, o de Niceia, no ano 325, que se reuniu para deliberar sobre a validade das teses de Ário. Apesar de derrotadas no debate eclesiástico, suas ideias continuaram a dividir os cristãos, influenciando muitas igrejas e seitas, até ser considerada uma heresia. Só no século V, quando o cristianismo se torna a religião oficial do Império Romano, é que a visão arianista é definitivamente extinta entre os cristãos, isso após muitas perseguições.

Num sentido diferente das ideias propostas no arianismo começa a se destacar no século V o monofisismo, que pregava que, após a chegada de Jesus ao mundo terreno (a encarnação), as duas naturezas, a humana e a divina, teriam se fundido numa coisa só, com predomínio da última. O Cristo, dessa forma, apesar de ser constituído originalmente de duas naturezas, tornara-se divino ao assumir sua tarefa redentora. Um contraponto dessa ideia, o diofisismo, pregava que Jesus teria preservado as duas naturezas de forma distinta ao ingressar no mundo. Essas ideias, como outras que se apresentavam como variantes desse pensamento, deixariam profundas marcas na Igreja da época, suscitando muito debates e ajudando a formar muitos sismas. O monofisismo seria condenado no concílio de Calcedônia realizado no ano 451, que confirmaria o diofisismo como crença predominante.

Vinte anos antes, num concílio convocado em Éfeso, uma outra variante dessas ideias sobre a natureza de Jesus já havia sido negada e classificada como heresia. Tratava-se do nestorianismo, filosofia que declarava a desunião entre essas duas naturezas na pessoa do Cristo, ou seja, humanidade e divindade entrosavam-se, na natureza de Jesus, de forma distinta, apesar de afeiçoadas uma a outra, sendo empregadas pelo Cristo em sua missão salvadora. Mesmo derrotada, essa visão cristológica desenvolvida por Nestório, patriarca da igreja de Constantinopla, se fortificaria em várias comunidades cristãs, que acabariam se separando da base principal do cristianismo. Suas teses ganhariam importante relevância em núcleos cristãos espalhados pela Ásia, que mais tarde se firmariam como instituições independentes do catolicismo de Roma.

Por fim, vale a pena citar também a crença adocionista, defendida por Paulo de Samósata, bispo de Antioquia. Segundo essa ideia, Jesus não passava de um homem comum, mas se teria mostrado tão virtuoso e identificado com Deus, que este lhe teria delegado a missão redentora junto aos homens. O Cristo então teria iniciado um caminho de altíssima iluminação e progressivo aperfeiçoamento até atingir a situação análoga a de filho de Deus, tal sua capacidade extraordinária de transcender a realidade humana e aproximar-se da essência do criador, condição que tem seu momento de confirmação quando do batismo de Jesus por João Batista.

O adocionismo seria também considerado uma crença herética no século II, mas não desapareceria por completo. Uma nova onda dessa visão cristológica ressurgiria no século VIII, sendo combatida e finalmente condenada no segundo concílio de Niceia, em 787.

Visões da natureza de Jesus como essas abordadas aqui e várias outras que propuseram interpretações variadas da presença do Cristo constituem um importante acervo da cultura cristã. O estudo dessas escolas de pensamento revela toda uma gama de tentativas de compreender a fundo esse acontecimento que continua marcante, principalmente na história do Ocidente, mas de alguma forma influindo em toda a cultura humana, apesar de todas as vozes, adeptas ou não, que se levantaram ao longo do tempo.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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