Vai pro Haiti!!!


O Haiti não é aqui, diz a letra da conhecida canção de Gilberto Gil e Caetano Veloso, numa referência à indiferença com que normalmente são tratadas as condições de vida do país mais pobre das Américas, como se entre nós isso também não fosse uma realidade. Mas para além da catástrofe humana presente na nação centro-americana, essa expressão poderia estar relacionada a outro tipo de indiferença: aquela que ignora a importância histórica do Haiti no contexto das ideias humanistas em torno dos países americanos nascidos à sombra do colonialismo europeu.

 

Uma certa mitologia da latino-americanidade tradicionalmente coloca Cuba como um dos principais símbolos da união entre os países do continente. A pequena ilha caribenha há muito tempo encarna o ideal de uma nação que soube rechaçar as tentativas de recolonização vindas dos países mais ricos e influentes do ocidente, numa trajetória que passou pela resistência bélica, como nos acontecimentos dos anos 1960, e chegou até o sonho da autonomia cultural e política, sem esquecer a resiliência diante do insano bloqueio econômico a que a ilha foi submetida por muitas décadas. Não deixa obviamente de ser justa a admiração que os entusiastas da integração latino-americana têm nutrido por Cuba.

 

Mas a análise de determinados aspectos históricos envolvendo o Haiti (normalmente esquecido no imaginário latino-americano) poderia corrigir o que pode ser entendido como uma injustiça histórica. O atual país centro-americano era conhecido nos tempos coloniais como ilha de Santo Domingo, hoje capital da República Dominicana, antes da divisão da ilha em duas nações. Era no século XVIII a mais rentável colônia do mundo e o maior mercado mundial para o tráfico negreiro. Com um sucesso comercial bancado à custa do trabalho de algo em torno de meio milhão de escravos, a ilha era o orgulho do colonizador francês e o sonho de consumo para as outras nações que exploravam o continente.

 

Os acontecimentos que sacudiram Paris em 1789 tiveram uma repercussão relativamente rápida na ilha caribenha. Apenas dois anos depois da Queda da Bastilha, a população do Haiti, formada em sua grande maioria por africanos escravizados (mas não apenas, havia uma pequena classe de negros livres, alguns dos quais proprietários de escravos), já havia sido bafejada pelas promessas libertárias dos enciclopedistas iluministas. Tinha início ali uma luta que duraria 12 anos contra as elites coloniais francesas.

 

Aqui cabe um aparte importante. O filósofo ganês Kwane Appiah apontou em alguns textos uma relevante diferença entre as propostas colonizadoras dos rivais ingleses e franceses, com os últimos muito mais empenhados que os primeiros em transformar os “inferiores” colonizados em súditos do rei e partícipes de sua cultura. Enquanto o orgulho francês tendeu a incluir os povos conquistados nas “maravilhas” da cultura galicista, os britânicos viam na suposta inferioridade dos dominados muito mais um perigo para a sua integridade cultural, o que não espanta numa nação que historicamente sequer se pretende muito irmanada aos próprios europeus. Isso talvez explique a rapidez com que os ideias libertários da Revolução
Francesa chegaram na colônia atlântica.

 

Um dos motivos que despertam a admiração latino-americana por Cuba está relacionado com a resistência à invasão da ilha em 1961, quando foi enfrentada corajosamente a poderosa tecnologia militar estadunidense. A verdade é que nada muito diferente disso foi a tarefa dos haitianos para levar adiante a sua rebelião. Os escravos tiveram que se defrontar com os proprietários de terras franceses, o exército do colonizador, uma tentativa de invasão dos espanhóis, uma expedição britânica e por fim uma ofensiva que já no reinado de Napoleão Bonaparte, com algo em torno de 60 mil homens, foi tentada na ilha. E olha que não contaram, como os cubanos, com o apoio logístico da outra metade da Guerra Fria (a União Soviética) para resistir ao inimigo!

 

Ao final de tudo isso, em 1803, os cativos de descendência africana decretaram o estado negro do Haiti. A única rebelião escrava bem-sucedida da história, e uma revolta que foi ao mesmo tempo a independência, aliás a primeira de todo o colonizado continente latino-americano, que inspirou muitos outros movimentos libertários pela América, incluindo a nossa por aqui, com reflexos ainda nos discursos da nossa tardia abolição. A troca do nome do novo país de Santo Domingo para Haiti traz também a emblemática resolução dos rebelados de apagar as marcas do período de exploração colonial, já que era o nome com que os indígenas da ilha chamavam sua casa, muito antes de europeus e africanos viverem por lá.

 

As “maldades” econômicas que as potências ocidentais impuseram a Cuba não deixaram também de ser imputadas aos haitianos. Em cima da quase completa devastação das lavouras do país em função dos muitos anos de guerra libertadora, os antigos colonizadores ainda conseguiram negociar uma indenização pelas perdas dos proprietários de escravos, num tratado que deveria garantir definitivamente a autonomia do país. Nem é preciso dizer que a milionária conta que o Haiti teve que pagar para se ver livre dos europeus está ainda hoje ligada à precária situação econômica que enfrenta. Um dinheiro que não foi apenas para o bolso dos antigos escravocratas, já que foi adquirido por empréstimo (adivinhem!) nos bancos franceses.

 

E pra não faltar nenhum ingrediente o Haiti também teve a sua “Baía dos Porcos”, quando tropas estadunidenses invadiram a ilha em 1913, alegando o pagamento de dívidas, procedimento ainda aceitável naqueles tempos pré-guerras. Os haitianos rechaçaram os ianques e ainda que à custa de novos prejuízos, econômicos e humanos, se mantiveram firmes. Voltaram a sofrer novas tentativas de intervenção ao longo do século XX, deixando lá problemas políticos que ainda permanecem.

 

Muitos brasileiros inclusive fazem uma leitura imperialista – e não humanitária – da longa presença de tropas nacionais chefiando a Missão de Paz da ONU a partir do final do século passado. Entendem, talvez com alguma razão, que os distúrbios sociais intensos que a ocupação militar visava controlar eram devidos à interferência das potências ocidentais, que chegaram a depor e depois conduzir de novo ao poder o presidente legitimamente eleito Bertrand Aristide.

 

Além das muitas semelhanças com a trajetória de Cuba em seu enfrentamento ao poder de nações poderosas, o Haiti ainda ofereceu um importante caminho de discussão sobre os princípios sobre os quais se fixaram os regimes democráticos do ocidente. É que, desde a libertação militar e declaração de independência em 1804, os haitianos estabeleceram um sistema jurídico que em muitos pontos superou aquele instalado pelos próprios libertários franceses.

 

Pra começar ergueram a não existência da escravidão à condição de ponto inegociável para o novo regime. Tanto é que, durante os anos de luta pela liberdade, chegaram a se aliar aos próprios franceses contra espanhóis e britânicos que almejavam dominar a ilha, aproveitando a perda de poder pelo antigo colonizador. Na tentativa de preservar poder e atendendo a anseios de correntes contrárias à escravidão na metrópole, a França pós-revolução decreta em 1794 o fim do cativeiro em todas as suas colônias. Alguns anos mais tarde, já sob comando de Napoleão, ao perceberem que o objetivo deste era restabelecer a escravidão na ilha, os haitianos não hesitaram em se lançar a novas etapas de resistência, conseguindo em 1803 expulsar definitivamente os franceses. Como se viu, os artífices da Revolução Francesa não eram unânimes em condenar a escravidão de seres humanos quando se tratava de suas colônias.

 

E a liberdade não foi o único lema da Revolução a ser bancada pelos haitianos antes mesmo dos próprios franceses. A igualdade também foi buscada quando os líderes da rebelião decretaram que todos deviam ser tratados como “negros”. Atendendo à intensa predominância desse grupo racial entre a população do país (os brancos praticamente desapareceram da ilha e os índios haviam sido extintos pelo sistema colonial), foi uma maneira de decretar que ninguém mais seria a partir daquele momento definido socialmente pela sua raça. É claro que usaram um discurso de racialização deixado pelo colonizador, mas no contexto isso equivalia a declarar uma sociedade onde a infame distinção de cor não teria espaço.

 

Por conta desses aspectos da revolução haitiana muitos estudiosos não hesitaram em afirmar que foi no Haiti onde os valores iluministas ressaltados na Revolução Francesa foram postos em prática com mais sucesso durante o período colonial. Muito mais que na própria nação-mãe da revolução, tendente, como vimos, a limitar os direitos de cidadania aos brancos e europeus. E até mesmo que nos Estados Unidos, que promoveram a primeira rebelião bem-sucedida contra o colonialismo, inspirando inclusive a própria França revolucionária, mas organizaram um estado altamente racista e desigual. Para muitos, a quase nenhuma relevância do caso do Haiti no contexto dos estudos sobre os valores iluministas representa uma grave lacuna na discussão sobre os direitos universais da humanidade.

 

Com uma independência fruto de uma grande rebelião africana, contra nações poderosas e mantendo ideais de justiça e igualdade, não é difícil entender como o pensamento hegemônico pôde se esforçar para vincular ao Haiti as imagens de caos social, miséria e vitimismo catastrófico, transformando-o no “coitadinho das Américas”. O que é mais difícil assimilar é como o pensamento dito “progressista” pôde manter a mesma postura, de alguma maneira se refutando a buscar na história desses nossos irmãos do continente inspiração semelhante à despertada por Cuba. Talvez seja o caso de fazer mais do simplesmente rezar pelo Haiti.

 

Leia também: “Os pensadores da África que ‘desenharam’ o Ocidente muito antes dos iluministas”, em http://bit.ly/2DXv3Wd

 

*Amigos, durante o mês de fevereiro essa coluna entrará de férias. O autor, que também é filho de Deus, vai para o seu justo descanso anual, para reciclar as ideias, se dedicar ao “ócio criativo” e retornar com toda força, trazendo textos, questões e muito pensamento. Obrigado a você que me acompanhou até aqui e conto com você ao longo de 2018.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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