O mito do Brasil paz e amor


Não há como negar que o pacifismo é um dos traços mais relevantes da cultura brasileira. A tal ponto que aquele que tomar contato com esse aspecto de nosso país deverá naturalmente se espantar diante de nossos incríveis índices de violência, seja no campo ou na cidade, ultrapassando em alguns casos o contexto de países em guerra declarada. Uma reflexão interessante a esse respeito, portanto, poderia ser a de buscar as origens do pacifismo brasileiro ao longo da nossa formação.

E um ponto de partida para isso pode ser o contexto do pós-independência, quando começam a ser delineadas as fábulas ou mitologias nacionais, necessárias para qualquer povo ou nação. Importante considerar, antes de tudo, que esse processo de fundar as bases de uma cultura nacional implicou para nós um rompimento histórico importante, na medida em que durante mais de três séculos a história do Brasil foi também a de Portugal, no máximo com breves referências a um luso-brasileirismo, ou seja, o Brasil como espécie de apêndice histórico de seu povoador.

Inaugurar uma história nacional implicou, assim, romper de maneira mais ou menos radical com nossas origens históricas na Europa. Esse processo coube entre nós aos primeiros intelectuais do pós-independência, basicamente poetas e escritores formados nas universidades da Europa e que, pertencentes de modo geral às classes mais abastadas, tiveram de se lançar a uma espécie de aventura pelas expressões culturais brasileiras. Nesse percurso, o índio acabou sendo considerado o mais genuíno representante da alma nacional.

O indianismo brasileiro acontece, dessa forma, dentro do ideário romântico das primeiras décadas do século XIX, sendo marcado por uma interessante combinação de pensamento iluminista com ética cristã. Um ilustre desconhecido para aquelas elites intelectuais do Brasil, o indígena seria pintado ao bel-prazer daqueles primeiros criadores do imaginário nacional. À exceção de um Gonçalves Dias, que participa de expedição para contato com etnias indígenas subvencionada pelo imperador Dom Pedro II, a maioria de nossos homens de letras sequer tinha visto um índio na vida (para muitos, inclusive, era verdadeira a ideia de que no século XIX não havia mais tribos indígenas no Brasil). Mesmo assim a “antropologia” do poeta de Canção do Exílio era basicamente realizada através dos livros, a partir de relatos de viajantes e sertanistas.

Esse quadro colaborou para a ideia pacifista anexada ao nativo do Brasil. De um lado era o selvagem inculto, manso por natureza, que teria sido muitas vezes desvirtuado pelos “vícios da civilização”. De outro era o imolado inocente, privado de sua posse natural (o Brasil), e condenado à extinção pelo que seria a “faina ambiciosa dos invasores de suas terras”. Assim, é a partir da figura do inocente injustiçado, porém pacífico, que nossos primeiros românticos buscaram estabelecer as bases do caráter popular e nacional brasileiro.

Esse padrão seria utilizado daí pra frente na abordagem de outros momentos históricos, e a maneira pela qual a história da Independência seria contada reflete bem isso. Aproveitando que a primeira realeza brasileira descendia da portuguesa, não foi difícil construir a ideia de que a autonomia nacional seria fruto de uma “negociação civilizada”, e que sem tiros e guerras nascia uma nova nação, um florão da América, iluminado pelo “sol do novo mundo”.

Uma noção que ajudou para que não figurasse no imaginário popular momentos efervescentes do Brasil pós-independência, como por exemplo a renitência dos paraenses a aderir à proclamação no Sudeste, mantendo-se fiéis de início à coroa portuguesa. Mais próximos geograficamente de Lisboa do que do Rio de Janeiro, os líderes da antiga província do Grão-Pará venderam caro sua integração ao império do Brasil. Uma guerra de quase um ano, praticamente ignorada pela maior parte dos brasileiros, mas ainda hoje vibrante na identidade dos habitantes do Norte do país.

Episódios como esse, bem como conflitos armados como os que ocorreram em províncias como Pernambuco e Bahia (que até hoje comemora orgulhosamente sua colaboração – pelas armas – para a independência), deixam claro o caráter sangrento da independência brasileira. Mas nas ideias mais correntes, inclusive ensinadas em muitas escolas pelo Brasil, ainda predomina a narrativa de uma independência sem dor e sem traumas com o antigo povoador.

A abolição da escravatura foi outro episódio que entraria para o imaginário brasileiro como movimento pacífico, no caso simbolizado na famosa sessão do congresso nacional em 1888, na qual a princesa heroína assina a Lei Áurea sob uma chuva de pétalas de rosas lançada sobre a assembleia, cena tão bem retratada em narrativas e pinturas brasileiras. Que ajudaram para que permanecessem imperceptíveis, para a maior parte da população, as inúmeras fugas de senzala, sequestros de escravos e guerrilhas abolicionistas que se formaram nos anos próximos ao decreto “libertador”. Com o prejuízo ainda de uma visão que acabou se solidificando entre nós de que os escravos “brandos e pacíficos” não se rebelaram contra o cativeiro ou se lançaram em armas contra seus opressores. Versão que qualquer estudo sério da história da escravidão no Brasil torna insustentável.

A mesma lógica da obsessão brasileira do pacifismo pode ser lida nos primórdios do século XX quando a questão racial começa a ser encaminhada. A necessidade de reabilitar os afrodescendentes depois de séculos de maus conceitos sustentados pela sociedade escravista foi conduzida exatamente a partir da ideia do escravo simpático e pacato, representado em figuras idealizadas da escravidão, como a camaradagem do Pai José, o contador de “causos” do engenho, e o espírito maternal da Mãe Maria (vale a pena ler o conto de mesmo nome, de Olavo Bilac), a ama de leite das crianças brancas. E o que dizer do próprio Brasil dos engenhos, como o pintado por obras como Casa-Grande e Senzala, no qual as relações entre raças são propostas a partir do “bom entrosamento sexual” entre brancos e negras, ou entre as muitas cunhadas dos homens brancos, pais da mestiçagem brasileira? Sem estupros, sem assédio, sem traumas!

O genocídio de indígenas, afrodescendentes e pobres de um modo geral que ocorreram e ainda ocorrem no Brasil já seria fator suficiente para se contestar a tese pacifista entre nós. Isso sem precisar irmos até outros episódios de rara barbárie e crueldade, perpetrados principalmente a partir de deliberações de nossas elites, como foram a Guerra do Paraguai (onde as tropas nacionais mostraram incrível disposição para o extermínio cruel) ou os nossos conflitos domésticos, como Canudos, Palmares e Contestado, só pra citar alguns.

Todos os países e povos criaram seus mitos e fábulas, e não há mal algum em que os nossos partam de uma visão pacifista da vida e da convivência humana. Mas é preciso que isso seja uma meta a ser perseguida com o envolvimento de todos, não um conjunto de narrativas que na verdade mascaram um quadro de injustiça social e profundas dissensões históricas entre grupos. O que nos faz quase sempre indiferentes a situações deprimentes do ponto de vista humano, como os assassinatos no campo, as chacinas das grandes cidades, a agressividade contra grupos não hegemônicos, como índios, afrodescendentes, homossexuais e mulheres, as condições degradantes em que seres humanos são encerrados em presídios, a truculência policial contra cidadãos comuns e até a presença de pleiteantes a cargos públicos que homenageiam torturadores.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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