O branco mais negro do Brasil


Vinicius de Moraes gostava de se intitular o “branco mais negro do Brasil”. Afirmação que foi de alguma forma confirmada ao longo da sua carreira, inspirada em grande parte nas referências do que se pode chamar de uma africanidade brasileira, como é possível constatar em várias temáticas de letras suas, além de outras manifestações como o disco que gravou com seu parceiro Baden Powell, a partir dos toques de atabaques das entidades de cultos de matriz africana, e até a sua própria conversão ao Candomblé.

Uma das suas grandes composições, o “Samba da Bênção”, mais uma bela parceria com Baden, é bastante emblemática da complexidade de como são as relações étnicas no Brasil. Em certo trecho da letra vai o seguinte: “Ponha um pouco de amor numa cadência. / E vai ver que ninguém no mundo vence / A beleza que tem num samba, não. / Porque o samba nasceu lá na Bahia, / E se hoje ele é branco na poesia, / Se hoje ele é branco na poesia, / Ele é negro demais no coração.”. Proponho agora um certo exercício de análise literária.

O narrador parece sugerir uma certa divisão do samba em duas esferas, a da poesia e a do sentimento. A primeira é branca, afirma, enquanto o segundo aparece totalmente identificado com a africanidade (negro demais). Essa leitura nos leva a buscar outras referências ao longo da cultura brasileira. Se fizermos uma espécie de panorâmica pela história das letras nacionais vamos constatar que literatura é fundamentalmente “coisa de branco” no Brasil. Desde o barroco de Gregório de Matos, passando pelo arcadismo de Cláudio Manoel da Costa, chegando aos românticos filhos das elites nacionais, como Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e até o condoreiro e abolicionista Castro Alves. Todos homens (brancos) de letras que para tal tiveram acesso à educação, em alguns casos incluindo os estudos na Europa.

Só a partir da segunda metade do século XIX começam a aparecer homens de literatura não brancos, fruto do avanço do discurso do “Brasil café com leite” que preparava o país para a inevitável abolição da escravatura e também do fortalecimento de uma cultura bacharelesca que permitiu que por meio do estudo pessoas até então presentes entre os menos favorecidos começassem a se destacar social e culturalmente. É desse momento a ascensão de nomes como Machado de Assis, Paula Brito, Tobias Barreto, entre muitos outros “mestiços” que se poderia citar.

A propósito, como comentou o mestre Antonio Cândido, o único escritor efetivamente negro da comunidade literária brasileira desse período foi o poeta catarinense Cruz e Sousa. Os outros afrodescendentes eram daqueles que “tinham o pé lá”, como se diz. Portanto, na poesia brasileira há um notório predomínio de brancos, como se pode constatar ainda hoje pela tonalidade dominante da Academia Brasileira de Letras. Mas como se está falando de samba, é necessário também avançar em outra reflexão cultural.

A maior parte dos historiadores da música brasileira concorda com a ideia de que o samba é filho do choro. Este último é um estilo desenvolvido na origem por artistas virtuoses em geral com sólida formação erudita, como eram os casos, por exemplo, de dois grandes nomes que estão entre os fundadores do choro, Ernesto Nazareth e Joaquim Callado. Ao executarem as valsas, polcas e outros ritmos europeus que aprenderam nas escolas de música e conservatórios, deixaram-se impregnar pela atmosfera musical predominante na capital do país, com seus lundus, batuques e cateretês oriundos da musicalidade africana. Assim nasce o choro.

À medida que ele se populariza pela cidade, vai chegando aos morros, áreas desprestigiadas da capital, habitadas fundamentalmente por ex-escravos e afrodescendentes livres, mas atingidos pela falta de oportunidades. Ali o choro se “descomplica”, isto é, feito por gente que não teve formação musical e normalmente nem condições de ter um instrumento, deu origem a uma forma improvisada de tocar, baseada em instrumentos de percussão, o que permitia a expressão de músicos de muita intuitividade musical e principalmente sensibilidade artística. Uma novidade importante: o samba passa a ganhar letras, contrariando nesse ponto o choro, que é um ritmo basicamente instrumental.

O samba não demora a sair dos morros e cair nas graças do gosto brasileiro, se configurando cada vez mais como uma paixão nacional. O que significa dizer que ele foi capturado pelas narrativas hegemônicas do Brasil, sendo o Estado Novo e o prestígio que buscou conferir ao samba o exemplo talvez mais evidente. Quer dizer inclusive que passou a ser também coisa de branco, afinal esse foi o viés predominante na cultura brasileira, um país que se pretendia sobretudo europeu, relegando outras referências culturais à situação de coadjuvante. A condição do samba feito pelos negros triunfar nacionalmente era ser também coisa de branco.

E aí nos encontramos novamente com Vinícius. O samba atravessa o século XX como genuína expressão da cultura brasileira, preservando a sua estrutura tradicional: ele se tornou branco na poesia (com letras cada vez mais geniais, figurando no olimpo dos compositores brasileiros) enquanto a emoção e o sentimento nele presentes continuavam a cargo da africanidade brasileira.

E pra quem duvida desse lado “do coração” citado por Vinícius, importante lembrar um interessante discurso que se ensaiou no limiar entre os séculos XIX e XX no Brasil. Trata-se da Igreja Positivista, uma espécie de apêndice da filosofia fundada pelo francês Auguste Comte em forma de religião. Dizem as más línguas que foi movido pela paixão que o filósofo resolveu enveredar pelo caminho místico, depois de desenvolver uma filosofia que sustentava um amplo predomínio da razão sob outras formas de conhecimento. Ele teria sido flechado pelo amor, o que o teria levado a conceber uma religião que adota não um deus, mas uma deusa, a natureza, que ele apresenta personificada no feminino. Como amar é “coisa de mulher”, já que aos homens cabiam coisas “mais sérias” como a razão e o pensamento, o amor é apresentado na religião positivista como a mais importante das expressões humanas, acima da ciência, da arte e da filosofia.

Os adeptos brasileiros da igreja de Comte trataram de promover uma adaptação nacional à religião. Como o amor é a coisa mais importante, a africanidade seria a principal referência cultural do país, pois aos filhos da África caberia espalhar o amor através da nossa sociedade. Interpretação que muitos sustentam no Brasil e que se afinam bem com certas ideias (equivocadas em sua maioria) que se popularizaram, como a de que os escravos aguentaram pacificamente os maus-tratos da escravidão ou que combateram a forte exclusão com alegria, amizade e sem ódio.

Os versos de Samba da Bênção assim como as referências culturais que foram levantadas aqui expressam na verdade aquilo que muitos costumam chamar de “racismo estrutural” do Brasil. O samba formado pela poesia dos brancos letrados e do amor dos negros, como disse Vinícius, é um excerto desse racismo, com o qual estamos tão acostumados. Ele expressa na verdade a ideia de que no Brasil é cada um no seu quadrado, pra usar uma expressão popular.

Nesse “racismo estrutural do bem” de Vinícius, o lugar dos brancos que tiveram acesso à educação é preencher o samba de poesia, enquanto o lugar dos negros em sua maioria excluídos é o de expressar o amor e a emotividade nacionais. É uma variante do bem de um processo na verdade cruel, na qual os negros ficavam nas senzalas e os brancos nas casas-grandes; os negros cozinhando, varrendo e consertando e os brancos nos tribunais, no funcionarismo público e compondo o empresariado nacional; os negros nas favelas e guetos e os brancos nos bairros urbanizados.

Tudo funcionando com normalidade, com cada um fazendo a sua parte e tendo suas próprias compensações. Um processo só atrapalhado pela constituição de 1988 e sua insistência em enfatizar a necessidade de sermos um país igualitário. No samba pode até ter funcionado bem. Na sociedade brasileira, cada vez menos. Basta ver as estatísticas negativas em que pobres e negros estão mergulhados. É lógico que Vinicíus de Moraes não era nada que se pudesse chamar de racista, aliás merece mesmo o honroso título com que se autointitulava, pois poucos fizeram tanto pelo protagonismo da africanidade brasileira. O poeta apenas era o que todos nós somos: agentes (conscientes ou não) da estrutura racista que atravessa cromossomicamente nossa sociedade.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.

*Na ilustração, Vinícius de Moraes e Baden Powell. | “O samba nasceu lá na Bahia, e se hoje ele é branco na poesia, ele é negro demais no coração”, diz o Samba da Bênção, um clássico da MPB. Mas, por trás dessa pérola do grande poeta, uma necessária reflexão sobre a sociedade brasileira. É o convite pra você nesse primeiro texto do ano.


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