O grito do Ipiranga nas margens nada plácidas


A tela do pintor Pedro Américo retratando o gesto de D. Pedro I foi um dos registros que mais contribuíram para a ideia de heroísmo e bravura que se popularizou na visão dos brasileiros sobre o episódio histórico da Independência, quando supostamente o ousado príncipe contrariou a própria monarquia da qual fazia parte para dar nascimento a um país. O chamado Grito do Ipiranga teve tão pequena repercussão na época (uma nota discreta num jornal da então capital do Império é um dos poucos apontamentos sobre o fato), que outras datas ligadas ao fato foram aventadas para simbolizar a autonomia do Brasil frente a Portugal, como por exemplo o “Manifesto aos Governos e às Nações Amigas”, produzido por José Bonifácio, no dia 6 de agosto daquele mesmo ano, e até o documento assinado pela princesa Leopoldina, cinco dias antes do 7 de setembro, decretando a separação.

Nove anos depois do gesto simbólico às margens do riacho em São Paulo, o herói-monarca voltava à Europa, com ampla reprovação da população que outrora o tinha aclamado como regente e o festejado no famoso episódio do “Fico”. Um dos principais motivos da abdicação ao trono decidida por D. Pedro I foi o imenso desgaste que teve de enfrentar depois das muitas ações bélicas que autorizou para sufocar rebeliões e tentativas separatistas no hiato de poder que se formou entre o Grito do Ipiranga e a consolidação do processo da independência.

Legenda: A tela de Pedro Américo que motivou o imaginário nacional.
Legenda: A tela de Pedro Américo que motivou o imaginário nacional.

 

Esses conflitos, somados àqueles travados entre tropas brasileiras e portuguesas (que não entregariam de bandeja a independência), desmentem claramente a ideia por muito tempo sustentada na memória nacional de que a separação entre Brasil e Portugal ocorrera de maneira “harmoniosa”, contrariamente ao que teria se dado nas sangrentas batalhas que marcaram a independência nos países vizinhos da América espanhola.

Um bom exemplo disso são os conflitos que irrompem na Bahia poucos meses antes da decretação da independência. A cidade de Cachoeira entraria para a história como a primeira a sustentar uma resistência armada a tropas portuguesas. Os sucessos relativos alcançados na pequena vila do Recôncavo Baiano não demoraram a chegar à capital Salvador, onde por mais de um ano violentos embates entre exércitos um tanto “improvisados” – com pessoas do povo em auxílio a tropas oficiais – e soldados portugueses se espalharam pelas ruas da primeira capital do Brasil. Mesmo assim, no dia 2 de julho, mais de dois meses antes da data que entraria para a história, os baianos decretaram o país como independente. Uma data que comemoram de forma entusiástica ainda hoje.

Outras províncias do Nordeste foram importantes cenários de luta contra tropas portuguesas nos meses posteriores à decretação da independência na capital. Foi o caso de Oeiras, primeira capital do Piauí, onde exércitos fiéis a Portugal tentaram sufocar manifestações populares a favor da separação. Com a resistência persistente, combatentes de outras províncias, como Ceará e Maranhão, se juntaram aos piauienses e conseguiram debelar definitivamente os lusitanos em março de 1823, num conflito que ficaria conhecido como a Batalha do Jenipapo, que deixou um saldo final de centenas de mortos, grande parte deles sertanejos e escravos, heróis anônimos da independência do Brasil.

O caso do Grão-Pará foi paradigmático. Os paraenses hesitaram em ceder ao movimento de apoio à ascensão de D. Pedro I. Lideranças vinculadas a cidades do interior da província, que incluía todo o atual norte do Brasil e o Maranhão, tinham muito mais em vista a independência a um só tempo de Brasil e de Portugal, o que apenas demonstrava o descontentamento histórico que predominava entre os habitantes da região com relação às decisões nacionais tomadas pelos governos, em geral influenciados por grupos instalados no Sudeste.

A adesão dos paraenses à Independência só ocorreria um ano depois do Grito do Ipiranga, através de um processo que nem de longe pacificaria o ânimo dos descontentes. Para chegar a esse resultado tropas enviadas do Rio de Janeiro se dirigiram ao Norte a fim de sufocar aqueles mesmos que antes tinham beneficiado o príncipe D. Pedro expulsando de lá os lusitanos.

Gestos de extrema violência bélica como os usados no Grão-Pará foram empregados em vários outros pontos onde a resistência à separação se manifestou, e na prática serviu como espécie de laboratório para dar fim às muitas rebeliões locais que eclodiram no Brasil pós-independência, como foram os casos, por exemplo, da Confederação do Equador e da Guerra da Cisplatina, onde tropas imperiais não economizaram em ações violentas e muitas vezes desumanas.

Até a condução da vida pública brasileira foi afetada pelo clima bélico daquele momento histórico, com D. Pedro I demonstrando em vários momentos um perfil autoritário e despótico, que não demorou a desgastar a imagem que até então era a de um herói impetuoso e valente. Em 1831, não foi possível outra saída a não ser a abdicação ao trono e o retorno à Europa do monarca, dando fim a um processo que na visão de muitos representou a consolidação do movimento de independência.

Assim, apesar da maneira festiva com que a data é lembrada ainda atualmente, não se pode de maneira nenhuma ignorar o fato de que a separação de Portugal consumiria muitas vidas, em sua maioria de gente de povo que quase sempre voluntariamente se lançou à luta pelo país, e cujos atos não podem permanecer na obscuridade derivada da ideia do suposto clima diplomático e caseiro que teria presidido esse momento da história nacional. O Brasil pré e pós-independência foi na verdade um barril de pólvora que em nada ficaria devendo a outros processos separatistas do continente americano.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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