Formação das Nações Latino-Americanas


Ultimamente parece ter entrado em evidência o uso do termo “bolivarianismo”, aplicado num sentido pejorativo para expressar o recente estreitamento de relações entre o Brasil e as nações vizinhas do continente. A palavra faz referência ao pensamento de Simón Bolívar, um dos grandes líderes ligados à independência de quase todos os países da América “hispânica”, que sustentou ao longo de muitos anos sua convicção de que o melhor destino para o continente era a proximidade de interesses e a união estratégica para as mais variadas situações.

Entre nós, a tradição historiográfica referente a nossa independência tem consagrado a ideia de que os movimentos de emancipação das nações americanas contaram com uma importante atuação da Inglaterra, que de fato aparece relacionada a muitos momentos chave dos processos de autonomia, e também sendo, em grande parte das vezes, a maior beneficiária nas demandas dos países recém-libertos do jugo colonizador.

No entanto, a análise de certos acontecimentos e personagens mostra que não se deve abrir mão de entender a independência do Brasil como um evento inscrito no âmbito da realidade de todo o continente americano, mesmo que o país tenha sido muitas vezes entendido mais pelas suas diferenças em relação à realidade continental, seja pela colonização de base portuguesa, seja pela sua vivência política todo o tempo calcada numa visão monárquica, enquanto os demais países vizinhos sempre tenderam à república.

Para compreendermos essa relação entre o Brasil e seus vizinhos da América, talvez bem mais estreita do que se pensa, nos reportamos a 1750, quando da assinatura do Tratado de Madri, que previa algo bastante inusitado para o contexto do colonialismo europeu: declarava que, em caso de guerra entre portugueses e espanhóis na Europa, os súditos na América deveriam buscar a “continuação de perpétua paz e boa vizinhança”, se abstendo de reproduzir aqueles conflitos no Novo Mundo. Assim, o documento que visava disciplinar as relações territoriais entre as duas grandes nações colonizadoras da América já garantia aos súditos as condições que os predisporiam a decisões conjuntas baseadas no entendimento. Esse caráter, ao que parece, se manteria na sequência pelo século seguinte quando os movimentos de emancipação ganham força no continente.

Um bom exemplo é a postura muitas vezes explicitada por Bolívar, quanto à importância do Brasil para o grande projeto libertário no continente. Ao contrário do que se poderia supor inicialmente, as diferenças entre a realidade brasileira, como nação de colonização portuguesa, e a dos países hispânicos ficariam sempre em segundo plano na visão libertador da América. Mesmo lutando contra a coroa espanhola, de alguma forma ligada à família real portuguesa através da rainha Carlota Joaquina, Bolívar tinha a percepção de que o projeto emancipatório do continente não poderia dispensar a colaboração do Brasil. Por esse motivo, em muitas ocasiões trataria de estimular o sentido de colaboração mútua, como na carta que envia ao presidente da Bolívia em 1827 enfatizando a importância do cultivo de boas relações com o país vizinho, mesmo se tratando de um regime monárquico.

Em 1826, o Congresso do Panamá, convocado por Bolívar para firmar o acordo de cooperação mútua entre os países recém-libertos do colonizador, seria estendido ao Brasil, que acede ao convite e participa dos colóquios, mesmo não adotando as deliberações definidas no encontro, como o fim da escravidão, por exemplo, que só aconteceria entre nós muito mais tarde. Por fim, em 1830, em audiência concedida a um representante brasileiro, Bolívar classifica o apoio do país à causa da união americana como “uma das garantias mais poderosas que as repúblicas da América receberam, na condução de sua independência”.

Mas essa posição colaboracionista do Brasil com relação a seus vizinhos de continente não é nada que cause espanto, se analisarmos alguns aspectos do nosso percurso em direção à emancipação política. O próprio José Bonifácio de Andrada e Silva, considerado o Patriarca da Independência por sua lucidez e influência das decisões de D. Pedro I, várias vezes manifestaria o pensamento de que os interesses das nações hispânicas deviam ser acompanhados de perto pelo Brasil, enfatizando o traço comum, que era o desejo de marcar a repulsa aos objetivos imperialistas dos europeus. Em outra ocasião deixaria bem claro o seu entendimento da necessidade de uma “liga defensiva e ofensiva de quantos estados ocupam esse vastíssimo continente”. Bonifácio, como se pode ver, partilhava com Bolívar da noção de que as nações americanas deviam caminhar lado a lado para solidificar seus processos de independência.

O jornalista Hipólito da Costa foi outra grande figura da elite intelectual brasileira a entender a importância de o Brasil seguir um caminho de autonomia política no bojo do processo libertador que ocorria em toda a América. Fundador em 1808 do Correio Braziliense, periódico editado em língua portuguesa apesar de circular em Londres, Hipólito franquearia as páginas de seu jornal a muitas ideias libertárias daquele período e teria contato com grandes defensores da independência das nações americanas e mesmo com muitos líderes, dentre os quais o próprio Bolívar.

No Correio Braziliense seria dado espaço a muitos artigos e documentos defendendo e referendando os movimentos de emancipação, uma atuação jornalística que levaria Barbosa Lima Sobrinho, um patriarca da imprensa entre nós, a afirmar Hipólito como o grande nome na Europa dos movimentos separatistas americanos. À medida que o anseio de independência ganha corpo por aqui, aumentava o espaço nas páginas do periódico na Europa para a causa, ao lado de outras de elevado teor, como a criação de uma universidade no Brasil e a própria extinção da escravidão.

Um fato pouco enfatizado pela historiografia oficial oferece uma boa medida de como a identificação cada vez maior do Brasil com a realidade americana seria determinante para dinamizar o processo de independência. Ignorando a essência do texto do próprio Tratado de Madri, Dom João VI, utilizando de suas prerrogativas de monarca do império ultramarino, resolve dar curso a duas ações militares pelo continente, ambas estendendo na América o conflito bélico na Europa. Depois de declarar guerra à França enquanto fugia para a colônia brasileira, resolve invadir, em 1809, as terras da Guiana Francesa em represália a Napoleão Bonaparte.

De outra feita, ocuparia no ano seguinte a margem esquerda do Rio da Prata, numa tentativa de demonstrar força contra os espanhóis com os quais vinham mantendo uma série de desentendimentos territoriais e diplomáticos. As duas ações, assim como outras duras medidas exigidas pelos nobres em Portugal após a Revolução de 1820, foram consideradas como um sinal de incompatibilidade entre os dois projetos. A constatação de que numa América oxigenada por ideais libertários não mais cabia omodus operandi europeu, baseado em marcações de ações explícitas e por vezes violentas.

A tradição historiográfica que se fixou entre nós pareceu optar por uma noção do processo de independência como algo isolado e diferenciado em relação à realidade que predominou no continente. Uma visão permitiu sustentar fábulas nacionais, como a de que a nossa separação de Portugal fora um processo pacífico, entre nações amigas, ou de que a nossa autonomia se devesse principalmente ao ímpeto heroico e destemido do imperador – o “Digno Chefe” D. Pedro I. Da mesma forma, através dela foi possível também defender teses que desencorajariam iniciativas conjuntas dentro do continente, contrariando, como vimos, uma cultura presente na mentalidade das elites coloniais, que via na união das nações americanas, semelhantes em cultura e história, um caminho para a afirmação dos povos do Novo Mundo dentro de uma ordem mundial.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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