Guerras Bárbaras pelos sertões


São bem conhecidos na historiografia brasileira os conflitos envolvendo os redutos de catequese jesuítica, os aldeamentos, e seus maiores algozes, os bandeirantes. Normalmente organizados nas regiões próximas ao litoral, quando muito nas zonas da mata, os núcleos missionários contavam com amplo predomínio de povos enquadrados na etnia Tupi, com os quais os europeus primeiro se encontraram desde suas primeiras incursões na costa do Brasil. Mas a tradição de abordagem histórica mais habitual muito menos referência tem feito aos chamados Tapuias, nome usado na época para se referir a outros grupos ou etnias nos quais se identificavam diferenças evidentes de língua e costumes em relação aos já conhecidos tupis.

O interesse pela ocupação dos sertões do semiárido surge a partir da descoberta do rio São Francisco, que abriu caminho para que se explorassem outras terras, atrás, obviamente, de enriquecimento. Até então essas regiões eram habitadas pela infinidade de etnias indígenas habituadas à vida naquele ecossistema, o que lhes daria características diferentes daquelas que os europeus já haviam identificado nos nativos do litoral.

Com recursos naturais evidentemente menos abundantes do que os que havia na costa, o panorama dos diversos grupos indígenas que ali viviam revelava uma maior presença de rivalidades entre etnias, configurando uma região que por si só, mesmo antes da chegada de não índios, já era mais marcada por guerras tribais.

Os quase setenta anos de conflitos no semiárido nordestino, numa área que se estendia da Bahia ao Maranhão, coincidiram com os anos em que as lutas de Palmares viveram seus episódios mais marcantes, o que em tese poderia explicar a pouca atenção que as chamadas Guerras Bárbaras têm despertado nos historiadores das questões indígenas.

Uma lacuna que certamente esconde uma parte importante do que foi a resistência indígena à perda de suas terras de origem para os colonizadores europeus. Ainda mais se considerarmos que as várias etnias tapuias não se apoiaram, como ocorreria aos de cultura tupi, nas missões religiosas, que, se não foram suficientes para livrar os nativos da faina ambiciosa dos bandeirantes e aventureiros, pelo menos contou com algum apoio oficial na desigual luta que muitas vezes foram as disputas de terras no Brasil colônia.

A própria denominação de “bárbaros” expressa essa diferença em relação aos de etnia tupi, que de um modo geral se acomodaram à proposta de catequização. Pintados pelos cronistas dos conflitos como índios arredios, violentos e avessos a tudo o que representava a “civilização”, foram tomados como autêntico obstáculo à expansão do processo colonizatório, o que naturalmente abria caminho para que fossem usados, sem qualquer tipo de mediação, os métodos mais violentos e agressivos, que deram a essas lutas um status de verdadeiro extermínio, como se pode perceber daquilo que foi possível preservar da cultura e das lembranças dos que de alguma forma ficaram a par do trágico destino de seus antepassados.

Mas é necessário considerar que os grupos de bandeirantes que adentravam os sertões e enfrentavam grupos tapuias não ficavam muito atrás destes no que se refere ao verniz civilizatório. Os europeus de melhor estirpe e os religiosos julgavam esses bandos de aventureiros como verdadeiros selvagens que pouco diferiam dos próprios nativos do semiárido. O bom exemplo é o próprio Domingo Jorge Velho, que liderou as tropas que promoveram a vitória final sobre Palmares, um bruto que sequer falava a língua portuguesa. Mas acreditava-se que justamente esse estado de quase selvageria era o atributo que lhes permitiria varrer os sertões da presença tapuia, abrindo caminho para a conquista da região pelos colonizadores.

As chamadas “guerras justas” estiveram entre os meios mais utilizados para minar a resistência desses povos. Consistiam em driblar leis coloniais destinadas a de alguma forma impedir o simples extermínio dos nativos, bem como posições de religiosos contrários aos banhos de sangue que muitas vezes eram as batalhas. Para tal, se buscava todo tipo de pretexto para atacar aldeias e em seguida escravizar e se apoderar das terras, mesmo quando se tratava de grupos que não tinham apresentado qualquer hostilidade aos europeus. As próprias guerras que eram travadas com outras etnias e que constituíam um traço cultural muito anterior à chegada de colonos eram tomadas à conta de ações “perigosas” para a estabilidade dos portugueses sobre as várias regiões do semiárido brasileiro.

Apesar da ferocidade e da suposta aversão aos europeus com que foram caracterizados nas crônicas, os diversos povos tapuias demonstraram uma tenaz capacidade para organizar sua resistência. Foram hábeis, por exemplo, na construção de alianças com outros grupos, alguns até rivais históricos, com as quais se fortaleceram para enfrentar os bandeirantes quase sempre melhor providos de recursos materiais. Essas alianças acabaram reunindo etnias muito belicosas, o que daria ares de extrema violência aos conflitos.

Essa capacidade associativa inclusive é expressa em uma das denominações usadas por historiadores para o conflito: Confederação dos Cariris, nome de um dos maiores grupos linguísticos nativos da região. E para soterrar de vez a ideia de tratarem-se de povos mais atrasados que os indígenas da costa, basta dizer que vários historiadores desse período creem que a resistência tapuia tenha sido responsável por um atraso de quase dois séculos na consolidação das regiões que habitavam até serem enfim tomadas pela colonização. O que mostra a eficácia de suas estratégias de luta.

É preciso também considerar que a perseguição a esses grupos, além de no final das contas favorecer o processo de colonização como um todo, enquanto objetivo do estado português, também pode ser entendido do ponto de vista da criação de um nicho econômico que se construiria principalmente através do cultivo do gado. O avanço pelas áreas habitadas por tapuias era devido à necessidade de viabilizar áreas para expansão de rebanhos.

Os que conseguiam estabelecer pequenos ranchos ou currais nas terras das quais expulsava povos nativos acabavam se fortalecendo economicamente e mais tarde sendo brindados com sesmarias e lotes de papel passado, conferido pelo próprio estado. Nem precisa dizer que essa foi uma das gêneses das oligarquias, com o tempo extremamente poderosas, que passaram a dominar os sertões do semiárido.

Não faltaram autores que situaram também esses primeiros e turbulentos contatos entre indígenas do sertão e brancos como o ancestral das muitas expressões de mandonismo, violência e injustiça social que estariam presentes em outros episódios típicos dos sertões do Nordeste, como o cangaço, os movimentos milenaristas e até episódios de insubmissão e rebeldia como o conflito de Canudos.

Sem deixar de ser isso tudo, as Guerras Bárbaras ou Confederação dos Cariris, seja lá o modo como as chamemos, devem ser vistas como um dos mais sangrentos capítulos do extermínio de indígenas no Brasil, e que deveriam, ao invés do relativo esquecimento a que foram relegadas pela memória nacional, figurar no horizonte de muito mais gente, além daqueles cujos antepassados viveram o pesadelo da chegada da colonização nas terras em que nasceram e viveram.

*A ilustração desse texto foi retirada do filme/série “O auto da Compadecida”, da Rede Globo.

Leia também: “Por que pouco se sabe sobre a participação de povos indígenas na Guerra do Paraguai?”, em http://bit.ly/2vpSjtW


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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