Como era a vida dos indígenas nas missões jesuíticas

Como era a vida dos indígenas nas missões jesuíticas
Índios Puri, por Johann Moritz Rugendas.


Muito já se falou sobre a presença dos jesuítas na formação da cultura brasileira, assunto que normalmente divide opiniões. Se por um lado não se pode negar a relação estreita e a cumplicidade entre a ação da catequese inaciana e um processo colonial repleto de disparidades e causador de muitos desequilíbrios sociais, por outro lado também é certo que, no horizonte dos primeiros séculos de presença europeia na América, os jesuítas estiveram relacionados às principais iniciativas de construção de uma ordem social coesa e estável, ainda que partindo da visão da suposta supremacia do ocidente cristão. Essa questão ganha novos contornos quando analisamos o contexto das comunidades brasileiras quando da súbita expulsão dos jesuítas e o contexto caótico que em seguida se instalaria. Um bom exemplo para essa análise é o aldeamento de Ibiapaba, na região onde atualmente se encontra a cidade cearense de Viçosa.

 
Fundado oficialmente em 1700, poucos anos depois já dava sinais dos grandes avanços que representaria para aquela época, pois muito rapidamente cresceram os limites da aldeia e o número de aldeados, entre religiosos, índios e mamelucos. A organização ali inicialmente proposta daria origem a inúmeras fazendas e vilarejos, que atualmente constituem cidades da região da Serra de Ibiapaba. Na primeira metade do século XVIII já havia se transformado no maior aldeamento do país. Algumas novidades importantes desde a implantação da política de aldeamentos em meados do século XVI ocorreram ali. Uma delas é que, ao contrário do habitual, foram os padres que atuaram como desbravadores do espaço que passaram a catequizar, em vez de simplesmente se aproveitarem de áreas onde índios e colonos já mantinham convivência.
 
Depois de muitos anos de conflito pela posse das terras, missionários foram obtendo progressos no entendimento com as tribos fixadas na região, instalada numa grande cadeia de serras, o que já estabelecia uma diferença importante em relação às experiências de aldeamento anteriores, que ocorreram ou ao longo do litoral ou nos sertões. A atuação missionária em Ibiapaba foi por muitos considerada um modelo de ação que deveria nortear a conquista de outras áreas ainda não alcançadas pelos portugueses, e que precisavam receber as marcas da colonização lusitana para que pudessem ser reconhecidas as garantias de posse da terra segundo as novas diretrizes estabelecidas após o Tratado de Madri, em 1750.
 
O difícil acesso e a ausência de quaisquer tipos de influência de outra natureza que não a indígena permitiram que os jesuítas instalassem um tipo de aldeamento diferente do restante do país, pois muito do que foi ali organizado se deveu à experiência dos próprios missionários nas suas andanças pelo inóspito meio ambiente e principalmente pelos grupos nativos que encontraram pelo caminho. Se no dia a dia dos aldeamentos pelo Brasil era comum a mistura de índios de etnias diferentes, ali em Ibiapaba isso aconteceria de forma natural, pois vários grupos, alguns bastante diferentes entre si, coabitavam o mesmo imenso espaço das serras. Tal como se pôde dizer dos aldeamentos ao sul do continente, as atividades organizadas nas aldeias de Ibiapaba foram bastante produtivas e bem-sucedidas em termos econômicos.
 
Em 1759, tão logo a expulsão dos jesuítas da colônia fora decretada pela Coroa, os aldeamentos da serra passaram por aquilo que muitos historiadores do período afirmam ter sido uma verdadeira pilhagem de bens. Num fato até pouco comum para o Brasil daquela época, as riquezas que os jesuítas acumularam nos aldeamentos de Ibiapaba estavam bem registradas e detalhadas, e constituíam uma verdadeira fortuna, dividida em fazendas, rebanhos e relíquias religiosas. Patrimônio que acabaria naturalmente nas mãos de tantos inimigos das atividades missionárias, a começar pela própria Coroa, que passou a ser dona dos bens ali erigidos. Os nativos das várias etnias que viviam nas localidades instaladas ao longo da serra seriam, naturalmente, os grandes prejudicados, pois se veriam de uma hora para outra deserdados das terras em que viviam e cultivavam, passando, enfim, a ser a mão de obra livremente manuseada pelos colonos que se impuseram como donos da região.
 
Acontecimentos como esse foram também muito comuns em outros aldeamentos, quando do decreto final de expulsão da Ordem do território brasileiro. As aldeias passaram para a mão de poderosos locais, formando os primeiros sinais dos redutos coronelistas e das grandes propriedades latifundiárias, ainda hoje base de grandes deformidades sociais brasileiras. Sem os jesuítas no comando, a integridade cultural dos aldeamentos foi rapidamente dando lugar à lógica do sistema de exploração colonial, com os índios contribuindo em grande escala para formar a imensa massa de trabalhadores rurais do Brasil. Os bens gerados nas atividades produtivas dos aldeamentos passaram a integrar o patrimônio das grandes fortunas do país. As igrejas e templos de culto foram entregues para a administração de outras ordens e compondo o acervo do catolicismo brasileiro.
 
A expulsão dos jesuítas não representou o fim das aldeias, pois elas continuaram com toda a sua infraestrutura, mas agora sob o controle de colonos ou de jurisdições locais. No entanto, com a ausência da catequese, os índios foram se dispersando e os aldeamentos se transformando em bairros e cidades, seguindo, de modo geral, o padrão das vilas e povoados de Portugal. Passando ao comando de colonos de estirpe duvidosa, muitos aldeamentos antes organizados e homogêneos deram lugar a contextos incrivelmente caóticos. Nas próprias aldeias do Ceará, religiosos remanescentes do período em que os jesuítas comandavam os aldeamentos relataram a existência de um certo Philipe Coelho, que depois de assumir vastas áreas que antes pertenciam ao trabalho missionário, não hesitou em jogar por terra os padrões familiares que os padres haviam conseguido estabelecer para os índios, passando a fecundar inúmeras índias e espalhar filhos por todos os cantos.
 
A violência, já uma marca do Brasil daqueles tempos, também aumentaria consideravelmente na colônia. Em geral, nos aldeamentos, os episódios de conflitos se restringiam aos ataques provenientes dos traficantes de escravos, que forçavam a que os moradores das aldeias se mobilizassem para defender suas casas e lavouras. Com o fim da ordem imposta pelos padres e em geral já assimilada pelos aldeados, estes passaram a estar vulneráveis a todos os tipos de aberrações oriundas da selvageria da vida colonial. Passou-se a conviver com situações como brigas, estupros, acertos de contas, traições e todas as demais ocorrências que em geral só seriam resolvidas mediante o emprego da força pelos mais poderosos. Conflitos tribais, muitas vezes convertidos em brigas de família ou de líderes locais, surgiam como consequência dos antigos conflitos provocados a pretexto de justificar a rebeldia dos índios e a possibilidade de lhes fazer “guerra justa”, com a qual eram naturalmente tornados escravos ou exterminados.
 
Os prejuízos seriam grandes principalmente para os indígenas, mas também para a própria posteridade da memória brasileira, privada de um acervo formidável e incalculável de conhecimentos e referências presentes na cultura dos primeiros habitantes do território. Por outro lado, talvez não houvesse como prever o destino e a situação atual dos índios brasileiros, levando-se em conta a voracidade com que os exploradores portugueses e a própria Coroa se voltaram para os recursos naturais da colônia. Ganância que certamente não incluiria em seus objetivos os conceitos de vida do indígena. Se é correto dizer que o mundo do índio foi destruído pela presença europeia, aí incluindo-se a ação ideológica dos missionários, também há lógica em considerar que o Brasil que poderia ter resultado de ordens sociais como a proposta em aldeamentos como o de Ibiapaba talvez nos tivesse predisposto a um cenário de menor caos e de não tão grandes deformidades sociais.
 
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