Conhecendo a Cabanagem


O Brasil dos anos posteriores à Independência foi marcado pelas várias rebeliões regionais, que deixaram exposta a insatisfação de muitas lideranças locais com os rumos que foram sendo tomados pelo Primeiro Reinado, que certamente não correspondeu a muitas das expectativas criadas durante o pacto que ajudaria a pôr fim ao domínio da coroa portuguesa. O resultado foi um clima de desordem provocado pela falta de confiança no novo regime, que levou a muitos movimentos, quase todos de caráter separatista, que mobilizaram tanto oligarquias regionais, como no caso da Revolução Farroupilha no Sul do país, quanto setores populares, como aconteceria em episódios como a Revolta dos Malês, que chamaria a atenção para a precária situação que atingia a economia agrária e escravocrata do Nordeste brasileiro.

No universo dos muitos conflitos desse período que entrariam para a história do Brasil, um deles se destacaria por vários aspectos específicos e pode-se dizer que não teve ainda reconhecida, no imaginário histórico do país, a sua real dimensão. A Cabanagem se configurou como um conflito singular primeiramente por ter suas raízes na própria contestação da proposta da Independência política do país.

Os paraenses hesitaram em ceder ao movimento da maioria das províncias de apoiar a ascensão de D. Pedro I. Lideranças vinculadas a cidades do interior da então província do Grão-Pará, que incluía todo o atual norte do Brasil e o Maranhão, tinham muito mais em vista a independência a um só tempo de Brasil e de Portugal, o que apenas demonstrava o descontentamento histórico que predominava entre os habitantes da região com relação às decisões nacionais tomadas pelos governos em geral influenciados por grupos instalados no Sudeste. A adesão dos paraenses à Independência só ocorreria um ano depois do Grito do Ipiranga, através de um processo que nem de longe pacificaria o ânimo dos descontentes.

A conta viria quase dez anos depois. As elites locais que consolidaram a adesão do Grão-Pará ao movimento de independência continuaram desfrutando da hegemonia e dos privilégios de descendentes de portugueses que eram. A província não fugia à regra do que acontecia em praticamente todo o Brasil: oligarquias regionais exercendo um mandonismo sem limites e impondo às grandes massas um regime de exploração semiescravista marcado por condições de vida miseráveis. Foi nesse cenário social que líderes de várias cidades paraenses conseguiram cooptar a imensa insatisfação da população espalhada pelas localidades encravadas na Amazônia. Alguns historiadores ressaltam também a importância dos muitos franceses exilados na Guiana Francesa, que teriam ajudado a disseminar pela população ideias libertárias hauridas no pensamento europeu.

Após o levante inicial em 1835, a província explode em movimentos rebeldes que tiveram início a partir de um episódio relativamente prosaico. O cônego João Batista Campos era uma importante liderança de Belém, que vivia em constantes confrontos com membros da oligarquia e do governo. Certo dia o religioso feriu-se no rosto enquanto fazia a barba e, forçado a refugiar-se em outra localidade em virtude de perseguições, acabou tendo uma infecção que acabaria por tirar-lhe a vida. A morte de um líder muito considerado acabaria sendo atribuída à ação de seus opositores e funcionaria como um estopim para a revolta, que logo mobilizaria grandes contingentes de pessoas que viviam espalhadas pela província apenas à espera de condições propícias para a luta.

Assim, a população daquela porção do país, basicamente composta de índios, negros e mestiços de todos os matizes, lançou-se impetuosamente à luta a partir de suas cabanas feitas de barro e palha, com muitas semelhanças com as moradias indígenas, que acabaram dando nome à rebelião. Para se ter uma ideia das condições em que aqueles brasileiros da Amazônia lutaram por melhores condições de vida, basta dizer que as armas que utilizaram eram, com poucas exceções, os mesmos objetos que empregavam em suas lidas diárias no campo, como foices e ancinhos. As mulheres também se engajaram na luta e de um modo geral atuaram fornecendo víveres para os combatentes, se desdobrando para produzir, a partir de mirradas lavouras destinadas a uma economia de subsistência, a farinha seca e a tapioca, base de sua alimentação.

Mesmo com essa precariedade, o movimento cabano foi considerado por muitos historiadores a mais vitoriosa rebelião popular de todo o continente americano. Em nenhuma outra os revoltosos vieram efetivamente a assumir o comando das instituições, como aconteceria no Grão-Pará por um período de quase um ano. Chegou a ser instituída uma moeda própria e legalizado o porte de arma, medida que representaria uma importante mudança da autopercepção dos revoltosos, habituados a viver inermes e indefesos sob as baionetas de jagunços e forças oficiais. Os cabanos também tomaram terras de portugueses e expulsaram da província várias famílias tradicionais que até ali desfrutavam de privilégios.

Mesmo com a aparência de triunfante, a revolução cabana se perderia na falta de entendimento dos líderes quanto aos rumos a serem dados à província. Durante o tempo no comando, os paraenses tiveram três governantes e não chegaram a esboçar um projeto que tornassem bem-sucedidos os imensos esforços da população. Isso permitiu que a reação do governo federal se organizasse e acabasse sendo instituída uma verdadeira carnificina para retomar as terras do Grão-Pará para controle da União. A cabanagem entraria para a história também pela ferocidade da luta e pelas atrocidades cometidas pelos dois lados. Estima-se um total de aproximadamente 35 mil mortes, que banharam de sangue os rios e igapós da Amazônia. Localidades inteiras foram dizimadas e populações ribeirinhas que muitas vezes não tinham nenhum envolvimento com a revolução eram executadas covardemente por jagunços e tropas federais, muitas vezes apenas por serem indígenas ou caboclos. Várias etnias passaram a ser perseguidas. Em várias localidades só sobraram mulheres, crianças e idosos.

Um capítulo à parte na Cabanagem foi a atuação dos índios mundurucu. Muito voltados para atividades guerreiras, os membros dessa etnia eram inimigos históricos de várias tribos espalhadas ao longo do território amazônico. Muitos dos rebeldes eram pertencentes ou descendentes de etnias habituadas a combater os mundurucus, que acabaram sendo cooptados pelas tropas federais e pela antiga oligarquia como meio de enfraquecer os revoltosos e suprir a ausência cada vez maior de combatentes, já que muitos passaram para o lado dos cabanos. No final das contas a atuação dos mundurucus seria decisiva para a queda dos rebelados. A Revolução do Grão-Pará, nesse sentido, foi também uma continuidade das guerras entre etnias indígenas amazônicas.

A Cabanagem entraria para a história oficial como mais um dos muitos movimentos separatistas que ocorreram no Brasil do pós-Independência. Mas na memória dos habitantes do norte do país, em especial do povo paraense, a revolução se tornou um traço do caráter, quase uma tradição. Ainda hoje é evocada uma identidade cabana, sempre pronta a lembrar o ímpeto libertário das províncias do norte, no afã de resistir aos desmandos e lutar pela liberdade e pelo direito à vida. A revolução de certa forma subsiste nos muitos problemas de luta pela terra que ainda hoje mobilizam massas de gente simples em busca de condições dignas de existência. Persiste principalmente no ímpeto contestador e inconformado presente na alma de cada paraense. Cada um deles traz no íntimo um pouco do sangue cabano.

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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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