Como transformar a dor em oportunidade

Karnal, Cortella e Barros, os “três tenores” que têm ajudado a popularizar a filosofia.

 

O termo “epicurismo” é comumente tomado como sinônimo de materialismo, trazendo ainda no bojo dessa ideia noções como a de hedonismo ou ateísmo, que em geral são evocadas para classificar estilos de vida que destoam do padrão ético-moral que marca a cultura do ocidente cristão. Mas um olhar objetivo sobre a obra de Epicuro, filósofo que viveu na cidade grega de Samos no século IV a. C., pode revelar uma ordem de ideias bem diferente daquela que se cristalizou no senso comum e mostrar que, mais que uma visão de mundo em parte ousada e desafiadora para os padrões predominantes, trata-se de uma filosofia que pode perfeitamente contribuir em mundo em aparente desacerto, como o que vivemos hoje.

Em primeiro lugar é preciso dizer que a obra conhecida de Epicuro não passa de três cartas escritas pelo próprio filósofo, somadas a textos produzidos por seus discípulos, o que não impediu que as ideias básicas sobrevivessem por muitos séculos e ao longo de vários contextos culturais diferentes, chegando de forma ainda bastante vigorosa na contemporaneidade. Uma boa forma de penetrar na essência do que pregava o pensador é refletir sobre a ideia de “tetrapharmakon”, termo comumente traduzido por “quádruplo remédio”, isto é, quatro argumentos destinados a ensinar as pessoas a não se influenciar pelo que o filósofo entendia serem as causas do sofrimento dos seres humanos.

A primeira dessas reflexões diz respeito à relação entre as pessoas e os deuses, segundo ele marcada por uma dependência que tem como efeito negativo aprisionar o ser nas coisas divinas. Como se pode depreender logo de início, apesar de partir de uma ideia materialista (para ele o corpo é a base da busca da felicidade), Epicuro não é exatamente um ateu, na medida em que reconhece a existência dos deuses. Mas os vê como seres bem-aventurados e felizes, por isso muito distantes e pouco preocupados com as mazelas humanas, o que deve liberar os seres humanos para buscar a felicidade em coisas mais palpáveis, como o prazer do corpo e a fruição da arte, por exemplo.

Livrar-se da pressão do divino – que segundo o filósofo traz prejuízos como a obrigação de seguir supostas regras de moral e o temor de decisões deterministas – é dessa forma um passo inicial para “cuidar das coisas da felicidade”, que o pensador aponta como finalidade de sua filosofia. Assim, uma das acusações mais habitualmente direcionadas a Epicuro, a de pregar o ateísmo, perde o sentido, inclusive desvinculando-o do nihilismo de Nietzsche, que muitos estudiosos apregoam como uma herança do filósofo de Samos.

No bojo das reflexões de Epicuro sobre a irrelevância do divino sobre os seres humanos desponta um outro argumento curativo, a pouca importância dada à figura da morte. Para o filósofo, a vida nada mais é que um encontro fortuito entre partículas da natureza, que se desfazem com a mesma naturalidade com que se fundem dando origem aos corpos. A alma, do seu ponto de vista, é um fenômeno restrito à vida e dá sentido ao corpo e à mente. Consequentemente, não há lógica em se esperar que depois da morte haja qualquer tipo de punição ou recompensa, e o que resta dessa forma ao ser é celebrar o corpo, desfrutando das sensações, dos prazeres, do intelecto e das demais potencialidades humanas.

Em outras palavras, Epicuro convida seus discípulos a viver sem o peso que o fenômeno da morte em todos os tempos infligiu aos seres humanos, seja o medo da morte propriamente dito, seja o temor do que poderia acontecer depois dela, seja ainda os cuidados e precauções que tomamos em vida para lidar com o fato de que vamos um dia deixar de existir. A simplicidade dessa “morte da morte” proposta pelo filósofo é bem expressa numa de suas falas: “Quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos”.

A dor, tanto física quanto moral, reconhecida como uma das maiores apreensões dos seres humanos, é também objeto de apreciação da “terapêutica” de Epicuro. Entendida antes de tudo como um fato da vida que não se pode negar nem evitar, perde parte de sua força sobre o ânimo dos homens, na medida em que se admite que não pode ser usada pelos deuses (que afinal não se ocupam dos viventes) para constranger ou dominar os seres humanos. Retirada desse quadro da vulnerabilidade humana, a existência da dor é proposta pelo filósofo, por um lado, pelo seu viés prático, pois pode ser sempre suportada e atenuada, seja pela medicina, seja pela própria vontade de quem sofre, se tornando dessa forma apenas um mal dentre tantos que compõem a experiência humana, passível de ser eliminado ou reduzido.

O outro lado da questão é a dor como oportunidade de conferir sabedoria, ou seja, poder ser tratada como matéria de reflexão filosófica. Assim, pode ser entendida como uma espécie de comunicação da vida para com as pessoas, na medida em que pode informar o que não vai bem no corpo e no espírito e consequentemente levar a mudanças de visão e/ou conduta. Uma função didática, portanto, que servirá de grande oportunidade de reflexão para o sábio, e que poderá levar à sabedoria aquele que sofre, o que por sua vez tende a eliminar o próprio sofrimento, afinal para quem é sábio as causas habituais de tormento humano são esvaziadas de sentido.

Depois de desmistificar os deuses e reduzir o peso da morte e da dor, a receita derradeira de Epicuro – praticamente uma conclusão – é que a felicidade é algo possível e pode ser resumida numa palavra: prazer. No contexto do filósofo isso significa antes de tudo a aposta no corpo, estância que em tese não depende de nenhum aspecto exterior ou coletivo para fornecer prazer. Assim, todas as formas de satisfação do corpo são apontadas como caminhos de felicidade, um universo a ser explorado pelo ser.

Sem ser constrangido ou acusado pelos deuses e podendo oferecer alguma resistência à dor e à doença, o ser humano encontra em sua própria estrutura física o caminho de viver bem no mundo. Reparemos que não se trata de simples aposta no prazer dos sentidos pura e simplesmente (sentido comumente atribuído a seu pensamento), mas de eleger o corpo como matéria de busca da felicidade, o que se faz com sabedoria, a partir do conhecimento filosófico e da conquista da espiritualidade (esta não no sentido metafísico, mas enquanto conjunto de valores abstratos).

Como consequência de eleger o corpo (a natureza, portanto) como princípio de busca da felicidade, um outro nível de coisas aparece no horizonte do discípulo, como o prazer de comer e beber, de se relacionar sexualmente, de equilibrar o corpo através da dança e da atividade física, de brindar os sentimentos por meio da fruição da arte e da beleza, de cultivar a amizade e as boas relações de intimidade. Hábitos que Epicuro praticou e recomendou a seus seguidores e interlocutores. Por outro lado, implica o abandono dos grandes projetos sociais de que de modo geral os seres humanos são bombardeados, como a ânsia de acumular bens materiais, galgar posições sociais e assumir altos postos na hierarquia social. Em suma, o tetrapharmakon pretende afirmar que ser feliz é possível.

Epicuro ficaria conhecido como “o filósofo do jardim”, uma referência a uma suposta pequena propriedade em que cultivava flores e frutas e servia de cenário para que pessoas se reunissem em busca da sabedoria, que pra ele era a precondição da felicidade e da anulação da dor. O jardim seria aberto a todos, independente de classes sociais, pois, no entender do filósofo, essas divisões humanas em nada concorreriam para a plenitude do ser e celebração da vida.

Uma representação da singeleza da natureza, por ele valorizada, e da proposta de uma existência na qual o ser humano pode ser feliz, bastando para isso que aprenda, através da filosofia, a escapar aos mitos e conceitos com que é enclausurado na vida social. Um conceito que de algum modo antecipa a visão iluminista de um ser humano corrompido pela sociedade, passível porém de ser salvo quando recupera dimensões naturais e espontâneas da existência.

Muito além do materialismo e do hedonismo com que foi relacionado (e de que foi acusado), principalmente pelo pensamento de base cristã ocidental, as receitas do tetrapharmakon de Epicuro talvez ainda se coloquem no mundo de hoje como algo passível de realizar-se, desde que para tal não se renuncie à possibilidade de tornar-se sábio. O que continua significando libertar-se dos deuses e demônios que nos são propostos (ou impostos), do temor da dor e da morte e apostar numa felicidade que venha do corpo, não como entidade biológica e sensorial, mas como realização da individualidade e das capacidades humanas.

Leia também: “O pensamento de Pitágoras e os números como base do conhecimento”


Deixar comentário

Podemos ajudar?