As muitas faces do Rei do Cangaço


Lampião é uma das figuras mais conhecidas do Brasil do século XX, sendo ainda hoje um personagem de referência da cultura nordestina. Inicialmente um marginal enredado por alguns no quadro do banditismo social de sua região, o cangaceiro teria seu nome no final das contas mais próximo do mito ou da lenda do que propriamente de uma figura pertencente a um universo histórico.

Como não poderia deixar de ser na era da comunicação no mundo moderno, a forma com que Lampião se fixa no imaginário do Nordeste e do país como um todo pode ser entendida a partir da maneira com que sua história foi abordada pela imprensa. É nas páginas de periódicos e mais tarde pelas ondas do rádio que um sertanejo baiano seria transformado no “Rei do Cangaço”, num percurso que ao mesmo tempo revela muito sobre o Brasil da primeira metade do século passado.

Uma das primeiras ações ousadas atribuídas a Lampião seria noticiada num jornal chamado “Correio da Pedra”, que circulava no interior de Alagoas, e narrava a ousadia de um jovem de apenas vinte e poucos anos que, à frente de um bando de salteadores, invadiu e saqueou a propriedade de uma viúva já de idade avançada, de importante influência na região, já que era a representante de tradicional família de proprietários rurais.

Na reportagem de caráter noticioso – ainda não há nesse momento nada que se permita adivinhar em que se tornaria o audacioso cangaceiro – aparece uma preocupação de sugerir uma situação de certa turbulência social, representada por aqueles bandos de malfeitores, capazes de oferecer perigo aos sertanejos, apesar de o ataque ter sido direcionado a uma propriedade de família abastada, aparentemente em nada afetando a vida dos pobres da região.

O episódio, porém, é sintomático de um momento político nacional e que afeta especialmente o Nordeste. Naquele início de século XX há um grande predomínio econômico do centro-sul do Brasil, por conta da chamada política do café com leite, que se caracteriza pelo revezamento de figuras do baronato da produção rural brasileira no comando do país. Nesse novo contexto a agora decadente, mas outrora poderosa, oligarquia nordestina desempenha função de coadjuvância, submetida às diretrizes impostas pelo sul e se limitando a manter suas tradicionais estruturas de poder, colocando-as a serviço das decisões tomadas pelas elites econômicas.

Se é uma situação que confere sobrevida a famílias antigas e antes hegemônicas na região, por outro lado a perda de relevância no cenário da produção nacional tem um efeito devastador sobre a vida da população mais pobre. Como naturalmente ocorre em situações como essa, não demoram a aparecer distúrbios sociais que ameaçam a “paz” de antes, sendo o cangaço a forma de banditismo social que mais se destaca, aproveitando a realidade e as condições ambientais do semiárido brasileiro.

Com esse cenário, as ações de bandoleiros que viviam em inóspitas regiões sertanejas, atividade que na verdade já existia há quase um século antes, começam a ser cada vez mais frequentes. O ataque ocorrido na propriedade em Alagoas ganha destaque nos jornais da época primeiramente pela agressividade e ousadia de um jovem de vinte e poucos anos à frente de um bando de experientes cangaceiros, mas sobretudo por representar uma espécie de sinal amarelo a indicar uma ameaça real ao poder e domínio político das tradicionais famílias rurais do Nordeste.

Seguindo assim o roteiro do Brasil do início do século XX, onde um papel muito importante na condução da vida pública cabe à imprensa (nada muito diferente de hoje), Lampião vai figurar entre os grandes frequentadores dos noticiários. Seus feitos vão ser cada vez mais acompanhados e vão ganhando uma dimensão em princípio regional e posteriormente nacional, naturalmente pintado com as cores que mais interessam às forças dominantes. É assim que a imprensa vai aos poucos estabelecendo no imaginário do Brasil a ideia de um cangaceiro lendário, destacado pelas ações ousadas e pelo perfil de psicopata que o tornam o inimigo, não só dos coronéis, de toda a população do sertão brasileiro. O povo, aliás, se encarregará de assumir importante função nesse processo de construção ao incluir as ações do cangaceiro em suas manifestações culturais, do cordel ao anedotário.

A imagem de Lampião começa a ter uma trajetória diferente a partir dos acontecimentos que sacodem o centro-sul do país nas primeiras décadas do século XX. Movimentos de revoltas militares eclodem, ameaçando em alguma medida a política então predominante. A mais realçada dessas iniciativas, que entram para a história com o nome de “tenentistas”, seria a Coluna Prestes, de tendência socialista, que abandona a luta nas cidades e avança em direção ao interior brasileiro, interessado em captar apoio popular para um grande levante.

A chegada dos guerrilheiros à região do semiárido em 1926 deixa em estado de atenção as classes dominantes dos estados nordestinos, a tal ponto que o Ceará, por exemplo, diante da iminência da chegada da coluna a seu território, pede ajuda a ninguém menos que o próprio bando de Lampião, visto como a salvação contra o “perigo socialista” pela sua vasta experiência de sobrevivência de tropas em regiões altamente inóspitas como o sertão.

Entre as figuras de relevo que se empenhariam em “defender o povo” do que consideravam uma séria ameaça estava o religioso Padre Cícero Romão Batista, personagem forte na região do Cariri e portador de gigantesca capacidade de influir no ânimo das massas. Ele foi apontado por muitos historiadores como o mais responsável por “bancar” a presença de Lampião, repudiada por muitos chefes locais, que naturalmente temiam a aproximação com um tipo que até então era a mais temida representação do banditismo sertanejo.

Tido como um verdadeiro “santo vivo”, o sacerdote não hesitaria em convidar os cangaceiros para a tarefa apresentada como cívica. Além de acenar com a possibilidade de deixar a condição de banditismo, tornando-se um “legalista” (como se dizia à época para se referir aos que defendiam a manutenção da ordem tradicional da região), e obter a patente de capitão (que acabaria sendo dada), a proposta era tentadora pela devoção que o própria Lampião nutria pelo religioso. Essa guinada na relação com o cangaço seria acompanhada de uma nova abordagem da imprensa no que se refere à imagem dos até então malfeitores da caatinga.

A estada do bando na cidade do Padre Cícero, Juazeiro do Norte, foi coberta pelos jornais da região com uma tonalidade bem diferente da habitual. O jornal “O Sitiá”, por exemplo, destacou o que se poderia chamar de “um outro lado de Lampião”, enfatizando o cotidiano dos dias em que ficou na cidade, quando os bandoleiros se mostraram pacíficos e acessíveis, despertando a curiosidade da população, que, mesmo em meio à incerteza, não resistiu em ver de perto e até tirar fotografias com os integrantes do bando. “Por onde passa é destacado em versos tal é a sua celebridade”, diz o periódico em uma de suas edições. A possibilidade de ter o cangaceiro lutando ao lado das forças tradicionais contra a ameaça da Coluna Prestes permitia uma certa “legalização” de Lampião.

A presença controvertida do Padre Cícero na questão também ajudaria a “reconfigurar” a imagem de Lampião. Avaliado como uma espécie de ovelha negra por setores conservadores da Igreja, era por outro lado bem considerado por outras forças políticas locais, o que o colocava sempre como um tema propenso a ser abordado nos jornais cearenses, normalmente envolvido em polêmicas. A ligação que sua figura passava a ter com a presença de Lampião nos conflitos daquele momento tornava a questão um tema a ser debatido em âmbito nacional. As críticas acerbas àquela aliança revezavam com a ideia de que a presença pacífica do cangaceiro, de alguma forma submisso aos ditames da sociedade, representava o poder desta de “domar” a fera que até então aterrorizava o sertão.

Pelos anos seguintes, até a extinção do bando pelas forças policiais em 1938, a imagem de Lampião figurou nos periódicos do Nordeste em especial, mas do Brasil como um todo, oscilando entre a imagem do marginal sanguinário que a patente oficial de capitão não reabilitava e narrativas que expunham os feitos do bando realçando não tanto o lado de desordeiro social, mas do “cabra” corajoso e destemido, que não se dobrava diante dos poderosos da região.

Uma imagem capaz de dialogar com importantes referências do Brasil da primeira metade do século XX, como a ideia do “sertanejo forte”, popularizada pelos Sertões de Euclides da Cunha, e até pela “gente de valor”, que Luiz Gonzaga ajudaria a fortalecer com suas canções recheadas de nostalgia e alegria nordestina. O Rei do Baião, aliás, que não deixou de surfar na popularidade de Lampião, como se pode comprovar pelos enfeites que usava nos trajes com os quais se apresentava, que se assemelhavam aos que os cangaceiros estampavam em suas fardas de guerra. Uma amostra da relação nem sempre serena que há entre a criação do imaginário (que muitas vezes é o terreno da imprensa) e o lugar que alguém pode ocupar nas narrativas da história.

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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.

Crédito da foto: Arquivo Rede Globo.


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