Como surgiu a política e o mundo de hoje


Que o homem é um ser político já se disse e muito provavelmente será difícil a alguém contestar essa afirmação. Também não parece ser discutível a ideia de que as questões e realidades humanas são, por assim dizer, o pano de fundo das atividades políticas. Essas noções parecem ficar bem mais claras quando analisamos a maneira pela qual os antigos gregos buscaram explicar a origem da política e consequentemente mostrar como os seres humanos estão fadados a praticá-la. Três hipóteses para a necessidade da política em geral figuram na tradição filosófica grega.

Uma delas é baseada no chamado mito da Idade do Ouro, uma narrativa que foi veiculada através de várias versões diferentes, mas que preserva uma ideia central, baseada num suposto momento em que os homens teriam sido obrigados a ser protagonistas de sua própria existência, rompendo com um longo e imemorial período de convivência harmônica e segura na companhia dos deuses, em que leis e regras de convivência eram simplesmente desnecessárias. Uma queda, portanto, da espécie humana é que teria tornado fundamental a criação de mecanismos voltados para garantir a sustentação e integridade da espécie. Assim teria nascido a política.

O nascedouro da política, segundo uma outra concepção, tem raízes mais mitológicas. Retirada da obra do poeta Hesíodo, está relacionada ao momento em que o semideus Prometeu oferece o fogo aos seres humanos, num evento mitológico que em parte encontra correspondência na história natural admitida pela ciência moderna. O caráter revolucionário da cultura humana atribuído à capacidade de dominar esse elemento da natureza também é reconhecido no mito que desponta do poema de Hesíodo.

Dominando a metalurgia e empregando novas e disruptivas formas de se alimentar, os seres humanos começam a sair de baixo da influência dos deuses, apesar de num primeiro momento se manterem afinados com eles. Mas as diferenças que despontam do domínio dos novos conhecimentos aos poucos incompatibilizam as duas estâncias, levando a que as leis estabelecidas pelos deuses percam a sua eficiência em manter a harmonia do mundo. Passando então a viver de forma autônoma, a política é o meio criado e adotado para estabelecer os princípios de coexistência entre os homens e suas instituições.

A terceira suposição a respeito da origem da política parte da existência do homem como portador do “logos”, ou seja, a palavra, tanto no sentido de fala quanto no de pensamento (“logos”, na língua grega significa tanto “discurso” quanto “razão”, que são considerados conceitos essencialmente interligados). Como podem se comunicar e produzir conceitos, os seres humanos praticam a política como uma expressão da natureza, que é assim entendida como a fonte do proceder político. Nem fruto do distanciamento dos deuses, nem consequência de eventos mitológicos.

Ponto importante para se entender o lugar da política é o conceito de “polis”, isto é, o cenário em que os homens se encontram para realizar o maior ideal da política, que é estabelecer um caráter de justiça à existência humana. A “polis” é entendida como uma forma altamente superior de vida, ficando abaixo apenas do estado ocupado pelo filósofo. Dessa forma, fazer política significa engrandecer a “polis”, dando a ela os atributos da justiça. Por esse motivo, os homens que praticam política devem ser vistos por suas supostas características de virtude, o que conduz à noção de que nem todos estão à altura de sua importância. É por isso que só podem construir a “polis”, isto é, fazer política os homens, adultos, livres e detentores de bens.

O impacto cada vez mais intenso dos eventos políticos sobre a realidade das relações humanas colaborou para a gradual supremacia da ideia da política como um fruto de convenções humanas (ideia defendida pelos chamados sofistas) em detrimento da noção clássica sustentada por pensadores como Sócrates e Platão, segundo a qual os homens praticam política partindo de um impulso da natureza.

O resultado dessa discussão vai ser a ideia de política como uma arte da palavra (produção de discurso), defendida pelos sofistas, que para tal desenvolvem toda uma ciência de falar para convencer (a retórica). Do outro lado, Platão vai entender o ato político como um resultado da escolha pela correta expressão da natureza. Para o discípulo de Sócrates, a realidade humana é composta de três almas (ou princípios de atividade), sendo a que ele chama de “racional” aquela capaz de determinar o uso político que resulta na justiça (as outras duas, a “desejante” e a “irascível” se mostrando incapazes de propiciar tal resultado).

Com a retomada das ideias próprias da Antiguidade no mundo moderno, depois do longo tempo de um ocidente mergulhado na religião, a política renasce de alguma forma recuperando os termos com que se desenvolveu no mundo grego. Se uma noção da política como concretização do ideal divino sobrevive como herança de um pensamento clássico adaptado para o ideário cristão, por outro lado o surgimento de um cientificismo impulsionado pelo pensamento de figuras do calibre de Descartes e Maquiavel abre uma porta para a maior valorização do discurso e com ele a noção de uma política que se constrói amparada nos atritos e impulsos humanos, fruto da solidão da espécie num mundo de relação, ideias aliás das quais partiam os sofistas.

Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, o mundo contemporâneo de maneira nenhuma se descolou das noções que envolviam a política na Antiguidade. Praticamente os mesmos ingredientes, apenas devidamente adaptados às condições de existência da atualidade, ainda pautam as ações na política e influenciam nas formas de praticá-la. Visto pelo olhar agudo da filosofia, estamos mais perto dos nossos antepassados atenienses do que normalmente costumamos imaginar.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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