Vamos pensar sobre o futuro?


Os seres humanos se transformaram de fato nos “senhores do planeta”? Lógico que se trata de uma pergunta polêmica, mas não se pode negar que nos últimos dois séculos a nossa espécie se converteu num tipo de potência geológica, que pode interferir nos elementos essenciais da terra, inclusive influenciando os diversos ciclos, alterando ritmos, fazendo combinações químicas e até deixando suas marcas nas águas e no ar.

Essa constatação levou o prêmio Nobel de química de 1995, Paul Crutzen, a propor a substituição do termo Holoceno, período que teria se iniciado há aproximadamente 10 mil anos, por Antropoceno (do grego “antropos”, humano, e “ceno”, sufixo que se refere às eras geológicas). Em outras palavras, a “Era dos Humanos” é marcada por uma tal capacidade de interferência no meio ambiente, a ponto de poder ser ombreada aos demais movimentos de transformação da natureza do planeta. O primeiro no qual a espécie não seria mais um paciente, mas um agente das mudanças.

Parece que não falta muito para que as instituições que representam o consenso científico no planeta formalizem a admissão do nome, que assim deixará de ser apenas uma consideração simbólica para representar de fato uma maneira de compreender a natureza e as muitas – e perigosas – transformações que ela tem sofrido pela ação de apenas um dos seres que a compõem.

Os estudiosos da questão propõem também que se considere como marco temporal para o surgimento do Antropoceno a década de 1950. E isso por alguns motivos determinados, como a presença, a partir desse período, de materiais como o plástico e o alumínio em estado puro, que ao que se sabe nunca foram registrados em qualquer período anterior da história; o aumento considerável do dióxido de carbono, em função do uso da energia baseada em combustíveis fósseis; e também a grande presença de plutônio na atmosfera, como resultado dos muitos testes nucleares. Assim, estamos num processo que se iniciou já há seis décadas atrás.

Foi de fato nesse período que começaram a se desenhar algumas das situações que estão na base dos problemas ambientais de hoje. O mais significativo talvez seja o aumento vertiginoso da população da terra, que era de aproximadamente 2,5 bilhões de pessoas em 1950 e agora já está perto dos 8 bilhões. Ou seja, o número de pessoas no planeta triplicou num período de menos de 70 anos, um salto absolutamente inédito na história conhecida da terra.

Houve também progressos inquestionáveis durante esse tempo. A pobreza absoluta foi em boa medida reduzida, o número de pessoas frequentando escolas aumentou muito, recursos como as vacinas, anestesias, antibióticos salvaram milhões de vidas, entre outros avanços, isso em termos de média global, já que esses benefícios infelizmente não contemplaram a população planetária como um todo. Mas o grande problema tem sido o custo desses progressos.

Vastíssimas áreas naturais foram destruídas, ecossistemas estão passando por sérios processos de degradação, a emissão de gases de efeito estufa em níveis perigosos, tudo isso para atender a essa melhora no padrão de vida da espécie humana. O aumento gigantesco da população por si só traz situações que hoje nos colocam sob várias ameaças, como os aterros sanitários, resultado dos resíduos deixados pelas pessoas, que são uma fonte de contaminações e doenças, e os oceanos, que têm a ciclópica função de manter o equilíbrio entre as substâncias, mas estão repletos de dejetos, principalmente os plásticos.

O que parece tornar tudo ainda mais grave é que, apesar dos alertas e estudos atestando a situação cada vez mais de risco para a vida no planeta, ainda não se dispõe de uma consciência global forte o suficiente para interferir nos hábitos e costumes que a parte mais rica da humanidade mantém e que estão ligados aos riscos ambientais.

O famoso estilo de vida ocidental (que há muito não é praticado só pelo chamado ocidente) continua a plenos pulmões, fazendo planos e projeções para o futuro e requisitando em escala cada vez maior matérias-primas e produtos industrializados, que representam destruição de ambientes naturais e poluição da atmosfera. O investimento em descobertas tecnológicas com potencial de mudar ainda mais a vida das pessoas, como a Inteligência Artificial por exemplo, é proporcionalmente muito maior que aquele reservado para pesquisas que buscam descobrir usos não destrutivos dos recursos naturais. É como se ignorássemos solenemente os sinais que há muito já foram emitidos pela natureza.

É verdade que a existência de outros períodos de grandes alterações do clima global já foi comprovada através de estudos científicos, algumas até talvez tenham tido como consequência problemas tão graves quanto aqueles que hoje enfrentamos. A questão é que foram mudanças ditadas pelos próprios ciclos da natureza, que aparentemente “calcularam” o impacto das alterações sobre os seres.

No Antropoceno, porém, o ritmo acelerado no aumento da população e o relativamente pouco tempo necessário para alimentar esse crescimento simplesmente não têm oferecido à maioria dos seres vivos condições mínimas de adaptabilidade, um recurso de que a natureza dota os seres para reagir a mudanças no habitat. O resultado provável, o desaparecimento de milhares de espécies, ainda não pôde ser avaliado com a certeza necessária com relação a seus possíveis impactos. Que consequências podem advir disso para a própria vida, uma vez que já é conhecido o caráter de interdependência entre as mais diversas instâncias da natureza? Ou seja, não dá pra assistir ao desaparecimento de várias espécies e achar que isso em nada nos afetará.

Tudo indica que o Antropoceno vai ultrapassar todas as alterações que aconteceram nos últimos cinco milhões de anos no que se refere ao aumento da temperatura global. Ao que parece, em toda a história da espécie Sapiens no planeta, jamais houve um fator tão ameaçador, quanto as mudanças no clima impostas pela ação humana. As consequências disso já vêm sendo previstas há alguns anos por boa parte da comunidade científica e incluem, entre outras coisas, a ocorrência de chuvas torrenciais em algumas áreas e alagamentos que muito possivelmente vão colocar em risco a agricultura, com queda acentuada na produção de alimentos e, lógico, aumento da fome, da pobreza, da violência, o avanço de epidemias e tudo o mais.

Deverá assim se intensificar um processo que já acontece de forma relativamente discreta, a existência de uma nova categoria de refugiados. Aqueles que simplesmente terão de migrar de suas regiões de origem em busca de outras menos atingidas pelas mudanças climáticas para manterem suas condições de vida. Se vemos hoje os problemas resultantes da imigração por fatores políticos, religiosos ou bélicos, podemos imaginar como vai ser quando esses enormes deslocamentos de seres humanos tiverem forçosamente de ocorrer por questão de sobrevivência.

Toda isso nos leva a uma reflexão inevitável. O que ocorrerá em nosso Antropoceno? A destruição que pode acontecer poderá nos levar a um retrocesso magnífico, um retorno ao Holoceno (o período geológico em que as sociedades humanas se formaram)? A era dos homens, aquela em que uma única categoria de ser vivo assumiu a capacidade de influir no meio ambiente e em todos os outros seres, poderá resultar em uma nova extinção em massa da vida no planeta, a sexta delas segundo os cientistas.

Todas as anteriores consistiram em processos naturais, dos quais resultaram novos contextos de vida biológica, em geral mais avançados. Será da mesma forma se o agente da destruição for uma única espécie? O que ocorrerá depois? Antes de fazermos nossas apostas, podemos ainda pensar na nossa parte para que tudo tome um rumo diferente? Questões que deveremos enfrentar!

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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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