Origem das palavra ubuntu e tekó – Palavras que o planeta precisa conhecer


“Tekó” e “ubuntu” são termos estranhos para a maioria dos brasileiros, mas estão relacionados a ideias bastante familiares em nações cristãs como a nossa, como fraternidade e solidariedade. Também têm a ver com noções não tão próximas do contexto da religião ou da ética, mas mais relacionadas a temas universais atuais, como ciência, tecnologia e até economia, chegando à grande questão do nosso tempo: o meio ambiente.

“Ubuntu” é uma palavra derivada do idioma quimbundo, integrante da matriz cultural bantu, cujas visões de mundo constituem a base da chamada cultura negro-africana, termo com o qual se pretende indicar a cultura que se estabelece a partir do deserto do Saara em direção ao sul do continente africano. Em suma, é o que vulgarmente foi chamado de África negra, partindo do pressuposto (hoje altamente questionável) da existência também de uma África branca, a propósito uma visão criada e disseminada pelos europeus com fins específicos.

O termo não tem uma tradução muito exata para a língua portuguesa, mas de um modo geral a ideia que ali se encerra é bem representada pela sentença “minha existência conectada com a do outro”. A filosofia presente por trás dessa palavra passa pela ideia de que a convivência harmônica entre eu e o outro é a chave de toda a felicidade na existência. O ponto central dessa ideia é quem é esse “outro”. Ao invés de restringir essa relação ao mundo dos seres humanos como faz a tradição ocidental, que separa de modo relevante o homem (ser pensante) das outras formas da vida, o outro na visão “ubuntu” engloba uma vasta cadeia de entes, que inclui as divindades, os antepassados, as forças da natureza, chegando até os homens e o que fomos habituados a chamar de reinos inferiores.

Um bom exemplo de aplicação prática dessa visão de mundo altamente totalizante, oposta ao individualismo predominante na visão ocidental de mundo, foi a África do Sul pós-apartheid, conduzida por Nelson Mandela. A nação fortemente influenciada pela cultura zulu, por sua vez imersa no pensamento negro-africano, ofereceu ao mundo uma belíssima lição de como reconstruir uma relação, antes marcada pelo extremo sentimento separatista, a partir da ideia de que tudo tem que estar presente e funcionar de maneira harmônica, como partes de um mesmo todo.

Foi assim que o grande líder se esforçou por introduzir na alma de uma nação castigada a ideia de solidariedade, que naquele contexto teve que passar por conceitos tão familiares a uma visão cristã de mundo, como o perdão e o esquecimento das ofensas. Não espanta, assim, que esse processo tenha contado com a participação fundamental de uma religião cristã, no caso a anglicana. A África do Sul de hoje é um país que vai se recuperando de seu doloroso passado, se assumindo cada vez mais como uma nação multirracial e multicultural. A visão proposta por Mandela no decorrer do longo processo do apartheid e mantida ao fim desse nefasto regime é apontada pela maior parte dos africanistas como uma influência direta da filosofia presente na ideia de “ubuntu”.

Já a noção de “tekó” não precisou ser trazida de nenhum distante continente, pois já estava milenarmente presente em nossas terras, através da experiência de povos como os guarani. O termo reflete a milenar experiência desse povo na sua busca por uma felicidade baseada na harmonia entre a natureza e os seres que nela estão incluídos. Para eles, dentro dessa visão, não cabe a ideia de posse sobre a terra, por exemplo, uma vez que é a terra que contém todas as coisas, incluindo o homem. Daí a extrema valorização da natureza e de seus inúmeros recursos. Na visão guarani, é na natureza que se estabelece um grande palco onde a reciprocidade e a inter-relação são praticadas, onde os seres trocam incessantemente e assim vão sustentando a harmonia da criação.

Esse sentimento de liberdade que o indivíduo guarani mantém em relação ao outro expressa-se na própria maneira como esse povo entende as finalidades da vida e seu papel na existência. Para eles, viver é desvendar o mistério que há em tudo e consequentemente nas outras pessoas. Tudo o que existe tem direito à vida e a ser preservado justamente porque existe pra revelar o mistério da vida. Não há consequentemente o sentido, por exemplo, em classificar ou separar as criaturas em denominações como raça, cultura ou religião. É através desse olhar que grupos guaranis têm sobrevivido por muitos séculos, mantendo suas crenças e tradições, sem deixar de conviver com a cultura de não-índios e às vezes parecendo totalmente incorporados a ela.

Nesse contexto, compartilhar experiência é um requisito fundamental. Muito distante das hierarquias ocidentais nas quais deter um conhecimento representa possibilidades de conquistas sociais, os guaranis transmitem tudo o que sabem. Tanto entre si quanto com aqueles de outras culturas que porventura venham a conviver com eles. Um bom exemplo disso é a ciência da cura pelos elementos da natureza, a sua medicina, fruto de uma elaboração milenar forjada no conhecimento da terra. Mesmo sendo prerrogativa dos líderes religiosos os procedimentos e rituais de tratamento, todos os integrantes detêm em algum grau o conhecimento sobre as ervas e plantas com suas propriedades curativas.

As duas filosofias, “tekó” e “ubuntu”, apontam para uma visão do todo que coloca o meio ambiente numa situação de total protagonismo, na medida em que ele é visto como um item fundamental para o bem-estar e o equilíbrio almejados. O que leva, ainda que por vias diferentes, a um encontro de interesses partilhados também na cultura ocidental, que por meio de suas descobertas científicas já constatou a condição de próximo exaurimento dos recursos do planeta e a necessidade de uma nova ética para com a nossa habitação.

Essa identidade de aspirações com relação ao meio ambiente, partilhada entre filosofias ancestrais como “ubuntu” e “tekó” e por parte dos pensadores do mundo ocidental cristão, é bem expressa em trabalhos de importantes intelectuais contemporâneos, como o do português Boaventura de Sousa Santos e do francês Edgar Morin, e entre nós, de Leonardo Boff. Todos aliás em sintonia com o Papa Francisco e sua encíclica “Laudato Sí”, propondo um novo paradigma da relação do homem com sua casa planetária.

Aqui no nosso próprio país, um dos grandes protagonistas da questão ambiental em função dos seus vastíssimos recursos naturais, filosofias como “tekó” e “ubuntu” já estão presentes há muito tempo através dos povos ancestrais indígenas e africanos. Visões relegadas ao ostracismo, a partir da imposição de um modelo altamente exploratório como ideia hegemônica, e que agora ganham novamente força pela contramão, trazidas novamente à baila pela luta ambiental que se tornou agora uma questão vital para a existência de nossa própria espécie, independente de quaisquer diferenças culturais, étnicas ou religiosas. Mais do que nunca, o mundo em nossas mãos!

*Na foto de ilustração, o popstar internacional Sting e o líder indígena caiapó Raoni.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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