As letras da inconfidência – Cláudio Manoel da Costa


O termo Arcadismo é de um modo geral empregado para se referir à versão brasileira do estilo literário que começa a ser praticado após o declínio da arte barroca na Europa, que lá é conhecido como neoclassicismo. Como aqui entre nós acabou caracterizado pela tentativa dos escritores e poetas de se organizarem em sistema semelhante ao das antigas arcádias da Antiguidade, esse estilo recebeu de nossa tradição crítica literária essa denominação.

Em boa parte dos livros didáticos que abordam a história da literatura brasileira, o arcadismo é apresentado como uma arte ainda distante do que se poderia chamar de uma literatura nacional, na medida em que os poetas árcades seriam meros reprodutores em terras brasileiras de visões de mundo e temáticas gerados em contextos muitos diferentes, além de que praticamente nada haveria, nas obras de nossos principais autores, que refletisse o sentimento de uma nação autônoma, já diferenciada em relação à cultura do colonizador europeu.

Mas um olhar sobre a obra de um dos nossos grandes poetas dessa escola, Cláudio Manoel da Costa, pode revelar traços de uma identidade que, embora perdida num emaranhado de referências literárias europeias e clássicas, talvez já antecipe a temática nacionalista que a nossa crítica mais habitual apresenta como assumida e intencional apenas mais tarde, nos autores do romantismo.

Nascido nas proximidades da Vila Rica do século XVIII, o poeta apresenta em grande parte de suas obras a noção de “exilado em sua própria terra”, um suposto sentimento de isolamento de alguém que, tendo convivido longo tempo com a “grandeza” da civilização europeia, era “forçado” agora a retomar o convívio na sua bucólica e agreste terra natal. Um dos traços mais marcantes desse sentimento é o desconforto por ser um homem de letras vivendo e produzindo literatura numa terra “rude e inculta”, como vai aparecer em vários de seus escritos.

Expressando a prática neoclássica de retomar uma estética baseada nas referências da Antiguidade greco-romana, Cláudio vai expor o seu sentimento de exílio a partir do diálogo com autores que abordaram temáticas semelhantes em suas obras. É o caso do soneto I de sua “Obras” em que faz referência ao poeta Ovídio, que fora expulso de sua Roma no século VIII d. C., sendo forçado a exilar-se em uma região distante e inóspita do império. Ali produziu uma obra que retrata a desolação pela vida que é obrigado a levar longe da “dádiva” que seria viver entre “os da sua raça”, em meio às maravilhas da “caput” do mundo.

Apesar de tentar imitar poetas como Ovídio, Cláudio Manoel deixa clara em seus versos uma diferença: mesmo a terra sofrendo (na sua visão) da falta de beleza, tanto por ser um espaço demasiadamente rude, como por expressar um bucolismo diferente daquele que compõe o cenário dos bosques da Europa, o poeta declara seu amor a ela. Se os autores antigos em seu exílio, assim como os do arcadismo europeu, lamentam profundamente a terra em que são levados a viver, em oposição a outras paragens tidas como sublimes, o árcade brasileiro sente a ausência de instituições elevadas e de cultura, mas se apresenta como emocionalmente ligado às alterosas em que nasceu.

É assim que a estética adotada em sua obra vai retratar as paisagens montanhosas da sua Vila Rica como cenário em que transitam seres mitológicos e divindades da esfera pagã, como recomenda o receituário neoclássico. As artes, assim como instituições do mundo letrado por ele valorizadas, como o direito e a política, aparecem nos versos de Cláudio Manoel como aquisições que a poesia acrescenta ao seu outrora agreste povoado.

As criações do poeta também reabilitam sua terra natal como espaço de manifestação da grandiosidade das formas naturais. Ao pintarem quadros de alto valor humano, como o amor verdadeiro ou a inspiração estética, ocorrendo em meio às paisagens singelas da natureza mineira, os neoclássicos tratam de igualá-la às artes e ações humanas inspiradas nos deuses. A oposição entre natureza e cultura, uma visão muito presente na Europa pré-iluminista, se ameniza diante da possibilidade de ambas serem harmonizadas pela força poética das musas.

Essa capacidade transformadora atribuída aos espaços bucólicos quando devidamente preenchidos pela criação do poeta é utilizada por Cláudio Manoel como maneira de elevar a uma categoria superior o outrora rude e inculto povoado natal. A ponto inclusive de ser classificado em alguns momentos como superior à própria civilização (a mais louvada instituição do mundo clássico), como se pode ver em versos como “Quem deixa o trato pastoril amado / Pela ingrata, civil correspondência / Ou desconhece o rosto da violência / Ou do retiro a paz não tem provado”.

Mas a reabilitação de sua terra de origem não se restringe aos versos. O poeta tratará de tentar de fato transformá-la num lugar de civilização e arte, ao fundar, junto com outros poetas de Vila Rica – então um dos espaços urbanos mais importantes do país, com já intensa produção aurífera – a Arcádia Ultramarina, em 1768. Num poema declamado num dos saraus de árcades, Cláudio Manoel já estabelece essa relação entre a produção mineral que leva desenvolvimento e civilização à terra e os supostos frutos culturais daí resultantes: “Se desde o seio onde os seus bens recata / Hoje a Terra nos dá tanto tesouro / Direi que torna a nós a Idade do Ouro, / Que já fugiu da habitação ingrata”.

A trajetória do árcade revelará que o imaginário neoclássico aplicado ao contexto cultural do Brasil do século XVIII não será algo tão inocente como se poderia esperar visto pelo nosso olhar pós-moderno. Afinal, em torno de uma classe de intelectuais, vários deles homens de letras e membros da Arcádia, se organizaria anos mais tarde o movimento inconfidente, sob forte influência de um pensamento que enxergava na terra possibilidades de concretização de um padrão civilizatório mais maduro e amplo que o estabelecido na condição de subserviência a uma nação europeia, predominante até então.

Cláudio Manoel da Costa é um exemplo de que um país começa a se fazer no imaginário de homens de gênio, ele próprio se convertendo de poeta provinciano a ativista revolucionário, conhecendo o desencanto com a derrocada do movimento e o isolamento (que talvez o tenha levado ao suicídio) na nação que ajudou a construir, se não pela transformação política direta, pelo menos através da construção literária.

Leia também: “Os vícios e virtudes da primeira civilização cosmopolita do Brasil”


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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