O Brasil holandês


Recife de hoje, arquitetura da época de Nassau

 

Parece correto dizer que os mais importantes registros de imagens do Brasil do século XVII foram realizados pelos artistas trazidos pela corte do conde de Nassau, durante os anos em que esteve à frente do projeto colonial holandês no Nordeste brasileiro. As produções artísticas desse período constituem um conjunto totalmente inédito na América do ponto de vista das imagens e características de terras exploradas por europeus. Foram pinturas, desenhos, mapas, tratados botânicos e zoológicos, além de muitas informações culturais a respeito de como era a vida naquele pedaço do Brasil sob domínio batavo, que abriram caminho para uma visão mais otimista do Novo Mundo, que até então era imaginado apenas pela exuberância de seus recursos naturais.

Esse novo olhar sobre os trópicos teria sido justamente o alvo de Nassau ao investir na vinda de artistas e estudiosos às terras americanas. O nobre holandês pretendia mostrar a eventuais investidores na Europa que as possibilidades extrativistas no Brasil não eram apenas uma aventura e podiam justificar o risco de uma empreitada tão ousada.
A missão acabou sendo tão profícua, que mesmo depois do retorno de Nassau à Europa, em 1644, obras importantes sobre o Brasil continuaram a ser produzidas na Holanda, como os escritos relatando os anos do conde à frente do projeto empreendido no Nordeste.

Os artistas também se beneficiaram desse período, pois um importante mercado para obras de arte retratando a vida nos trópicos continuou ativo na Europa, expressando a curiosidade dos nobres e burgueses europeus sobre a natureza, as paisagens e as gentes do Brasil. Albert Eckout foi um dos artistas que mais se destacaram na missão holandesa, com suas pinturas retratando índios, negros e mestiços do país, com impressionante riqueza de detalhes, numa obra de artes plásticas que muito se aproxima da fotografia, tal a obsessão realística do artista. Mesmo assim, trata-se de uma criação alegórica, pois, mais do que abordar a realidade social dos indivíduos sob o governo de Nassau, as obras se destinam sobretudo ao deleite de membros da corte ou a outros nobres, o que impunha, muito mais do que a realidade, uma composição que atestasse o lado positivo e reformador do colonialismo holandês.

A “Dança dos Tapuias” é certamente uma das obras mais conhecidas de Eckhout. A tela apresenta vários indígenas em princípio realizando uma dança de guerra, como se pode deduzir pela presença de tacapes e flechas em suas mãos. No entanto o quadro tem um nítido tom festivo, com detalhes como as penas coloridas no corpo dos índios, o que tira o peso de uma eventual atividade guerreira, mesmo se tratando de indígenas tidos como belicosos, como seriam os tapuias, que, diferentemente dos de tronco tupi, ficariam conhecidos sempre como mais hostis à presença de europeus.

Dança dos Tapuias, por Albert Eckhout

A forma com que a pintura se insinua ao espectador sugere interação com a cena presenciada. Esse sentido de abordar os tipos da terra de modo descontraído e alegre atende a um propósito de mostrar a colônia sob uma visão o mais distante possível dos propósitos mercantilistas da empresa colonial, ao mesmo tempo mantendo acesa a visão predominante da Europa de uma América como paraíso descoberto. Uma lógica semelhante ocorre nas telas em que Eckhout pinta afrodescendentes. Eles mais se assemelham a trabalhadores livres do que a escravos, uma vez que nunca aparecem em situações que demonstrem a condição de subalternidade, ao contrário, por exemplo, do que se poderá ver dois séculos depois nas pinturas de Debret, onde a vida dura dos cativos é exposta sem reservas.

Eckhout retrata um quadro que sugere um contexto econômico próspero, onde a abundância de postos de trabalho dispensa a atividade escravista e consequentemente os constrangimentos físicos a ela relacionados. O cenário social do Brasil holandês também é suavizado pela presença de muitos tipos mestiços estampados em suas telas, o que apontaria também para uma suposta situação de igualdade capaz de produzir casamentos inter-raciais, mais um acréscimo à coleção de índices de liberdade simbolizados pelo novo mundo das Américas.

Apesar de ficar conhecido por seus retratos de “gente da terra”, Eckhout também trabalha com alguns elementos simbólicos. Nas pinturas em que personagens da colônia aparecem representados há a inclusão de elementos cuja função é chamar atenção para determinados aspectos da vida cotidiana do seiscentos brasileiro sob o domínio de Nassau.

É o caso de pinturas como “Mulher Mameluca”, de 1641, onde uma mestiça apresenta-se levantando levemente o vestido deixando entrever uma parte do corpo, prática totalmente contrária à moral das famílias burguesas de então, mas, imputada a uma pessoa do povo no Brasil, sugere a ideia de sensualidade da gente nativa. Traços que, de forma leve e sedutora, ajudam a manter no imaginário da burguesia europeia a noção do Brasil holandês formado pela espontaneidade de uma população livre e trabalhadora, beneficiária da boa administração do conde nas terras sob a coroa holandesa.

Mulher mameluca, também de Eckhout.

Eckhout voltaria à Europa junto com Nassau e ainda por um bom tempo conseguiria veicular a sua arte em função do interesse cada vez maior que a burguesia do velho mundo mantinha a respeito das terras americanas. A arte do pintor holandês, com seus quadros que retratavam um Brasil idealizado pela necessidade de firmar o projeto colonial na América, desfrutaria de grande repercussão frente ao público consumidor de obras de arte no século XVII.

Apesar disso, Eckhout jamais seria reconhecido como um pintor de ponta no cenário das artes plásticas da Europa. Suas telas marcadas pela extrema perfeição ao retratar os personagens humanos daquela época seriam, porém, fundamentais do ponto de vista da criação de uma visão do europeu sobre o Novo Mundo. Para o Brasil, por outro lado, o trabalho do pintor holandês seria um dos mais importantes registros imagéticos desse período tão profícuo de produção de arte e cultura na história da formação brasileira.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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