A escravidão no Brasil sem chibata


As representações usuais do escravismo no Brasil, como se pode ver em pinturas, textos literários, artes cênicas e novelas, costumam dar mais ênfase a momentos tortuosos daquele período, como a vida nas senzalas, os castigos físicos e as condições em geral degradantes em que viviam os cativos. No entanto, um exame mais acurado desse momento da vida nacional mostra que nem sempre a chibata foi o meio preferencial para afirmar o amplo poder dos proprietários de escravos. Houve ocasiões em que seria mais vantajoso para estes buscar algum tipo de entendimento com o cativo do que simplesmente usar os mecanismos de imposição pela violência que tinham fartamente à disposição.

Um bom exemplo disso ocorreu durante o chamado Ciclo do Ouro. Ao contrário de outras fases de exploração comercial no Brasil, como a cana-de-açúcar e o café, baseadas nas propriedades rurais, a exploração aurífera se caracterizou por seu caráter fundamentalmente urbano, como se pode constatar, por exemplo, nas cidades históricas de Minas Gerais, que registram o estilo de vida dos grandes proprietários da época. Os locais de extração do minério em geral se situavam nas regiões rurais, geralmente em caminhos de difícil acesso e muito montanhosos, o que inviabilizava a presença constante do dono do negócio. A saída para isso era delegar a escravos “de confiança” a tarefa de levar o resultado da produção ao poder do senhor em troca da garantia de uma porcentagem.

Uma medida voltada para levar o cativo a preferir guardar recursos para uma futura compra da liberdade do que tentar alguma fuga que certamente lhe renderia grandes problemas com os sistemas repressivos da sociedade colonial. É em função disso que muitos documentos históricos fazem menção à presença, nos séculos XVIII e XIX, de escravos armados por seus senhores, desfilando pelos arraiais mineiros e às vezes se exibindo em tavernas e com mulheres. Muitos possuíam poder aquisitivo bem melhor do que muitos brancos que ainda não tinham conseguido se arranjar na rica colônia portuguesa.

Um outro bom exemplo ocorreria em torno de um século depois, quando a capital federal passa por importantes mudanças na economia e nas relações de trabalho, num processo que se incrementa a partir da chegada da Família Real. O aumento no volume de negócios motivados pela presença da corte europeia e principalmente a abertura dos portos, uma das principais medidas para a economia decretadas nesse período, levou muitas famílias que até então viviam de forma relativamente estável a sofrer com a concorrência dos novos tempos. Como no Brasil colônia brancos que se prezassem possuíam escravos negros, estes acabaram deixando de ser apenas serviçais da casa ou do trabalho para se transformarem em fontes de renda familiar.

Os escravos de ganho, como ficariam conhecidos, eram naturalmente muito mais aptos a ingressar no mercado de trabalho, principalmente nas muitas frentes que se abrem em função da maior atividade portuária. Se esboça então situação em parte semelhante à que o filósofo Hegel descreveria em sua “Dialética do senhor e do escravo”. Ou seja, os cativos que saíam à cata de trabalho e traziam ao final do dia o resultado de suas atividades, ficando com uma parte, acabavam desfrutando de certa “consideração” dos seus senhores, ornados de algum empoderamento, afinal eram como a galinha dos ovos de ouro da casa, e em muitos casos os únicos provedores da economia doméstica. Trabalhando para sustentar famílias inteiras, era natural que gozassem de um considerável nível de autonomia mesmo na condição de cativo.

Esse mesmo século XIX vê nascer um outro fator que acaba por tornar os escravos menos expostos à livre dominação dos senhores. É que o mercado mais complexo que se forma no país traz à tona as habituais regulações dos sistemas que se organizam, e junto com isso a grande valorização do direito. O valor das transações comerciais de seres humanos também começa a ser regulado, com os preços sendo fixados e determinados a partir da lógica do mercado. Em outras palavras, não era mais possível a um senhor estabelecer o preço que bem entendesse por um cativo, o que dava em algumas ocasiões o direito quase absoluto dos proprietários sobre o destino dos escravos. A situação passou a ser em parte semelhante ao que acontece hoje com os direitos federativos dos jogadores de futebol. Um valor é estabelecido em cartório e quem depositar leva.

Com isso, muitos cativos articulados e bem relacionados, aproveitando-se da lei, chegavam a alinhavar possíveis transações com futuros senhores que poderiam lhe garantir melhores condições e até alforria. Constrangidos pela possibilidade de perder um cativo que julgassem valioso, muitos proprietários tenderam a buscar entendimentos e relações mais horizontais, dissolvendo em parte o abismo de poder que antes marcava a relação entre esses dois atores tão presentes no passado brasileiro.

O mesmo também se aplicava a casos de maus-tratos e castigos corporais, pois um cativo podia recorrer à justiça e acusar o senhor por abusos. A denúncia podia redundar em indenização ao escravo e até na sua alforria. E se você acha que passado o processo em que um senhor fosse condenado o cativo podia sofrer represálias, saiba que a intensa atividade de advogados que se especializaram em leis que regulavam a relação entre proprietários e escravos atuou em muitos casos evitando a vista grossa das autoridades e garantindo o cumprimento de sentenças. Ao contrário do que se propaga normalmente, foram em número bastante considerável os casos em que escravos buscaram os tribunais e venceram demandas que lhe garantiram melhores condições de vida. Essa situação, no final das contas, acabava colaborando para que os donos preferissem o discurso da colaboração e até da familiarização de seus escravos como forma de evitar prejuízos econômicos.

Uma prova de que levar adiante a escravidão exigiu muito mais do que simplesmente a chibata são os muitos vocabulários, glossários, esboços de gramática e até publicações impressas sobre línguas provenientes da África, que foram encontradas durante os longos séculos de escravidão. O que sugere que os senhores e autoridades sentiram desde sempre a necessidade de meios mais sólidos e objetivos para se relacionar com os cativos. Assim, contrariamente ao que as narrativas e as imagens tradicionais apontam, os africanos não constituíam um grupo totalmente fraco e submisso, anulado eficazmente pela força de feitores e capitães do mato. Para levar adiante um projeto como a colonização do Brasil, baseado no regime escravo, foi necessário construir um conjunto de relações mais elaboradas e sofisticadas. É claro que a violência foi um componente presente nessa relação, mas isso não foi suficiente no trato com civilizações de nível mais alto como as culturas africanas que aqui chegaram, ao contrário do que a visão dominante pretendeu fazer acreditar.

Essas considerações de maneira nenhuma sugerem uma “brandura” da escravidão no Brasil, nem a ideia de que aqui o regime não foi tão cruel quanto em outras partes do mundo. Muito menos dispensam a sociedade brasileira do compromisso de promover a igualdade e a representatividade a que os afrodescendentes têm direito, já que sob nenhum aspecto são uma minoria entre nós. Apenas atestam que o ponto de partida da contribuição africana para a cultura brasileira não é a de povos atrasados, fracos e levados facilmente na ponta do chicote, mas de indivíduos sem os quais seria impossível construir uma nação como o Brasil, tal a força da sua contribuição em todos os sentidos.

 

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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.

 

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