Copa do mundo na Rússia…tensão pré-estreia


O Brasil inicia amanhã sua participação em mais um mundial. E se considerarmos o fato de que somos os únicos a estar em todas as copas, podemos dizer que ninguém entende mais de estreia do que nós. Não dá pra negar que tudo o que se faz pela primeira vez tem mesmo algo de desconfortável, misterioso. É assim num primeiro dia de um trabalhador numa empresa, na primeira visita à família do(a) namorado(a) e também…quando se vai entrar pela primeira vez em campo naquele que é considerado o maior evento do mundo, pra cuja participação os atletas lutaram arduamente nos últimos quatro anos.

Isso explica naturalmente que quase todas as seleções brasileiras, mesmo aquelas recheadas de craques consagrados mundialmente, tenham passado verdadeiros perrengues em partidas inaugurais de copas inclusive contra adversários que nunca passaram de coadjuvantes em mundiais. Vá lá, a fórmula de disputa do torneio realmente não ajuda muito! Já pensou perder na estreia para uma equipe sabidamente inferior e ter apenas dois jogos pra decidir o destino de um trabalho de quatro anos? O passado glorioso nesse caso acaba sendo um fardo pesado, pois ninguém vai querer entrar pra história por ter integrado uma seleção brasileira que cometeu o fiasco de não passar da primeira fase. Daí os nervos à flor da pele em cada estreia do escrete canarinho.

Mas não foi sempre assim. Na copa em que o Brasil conquistou seu primeiro título mundial a primeira partida foi liquidada com facilidade com uma vitória por 3 x 0 sobre a Áustria. Mas é preciso considerar que na época vivíamos plenamente o chamado “complexo de vira-lata”, como chegou a dizer o dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues. Vínhamos de uma participação ruim na copa anterior, atribuída a uma suposta incapacidade dos brasileiros de triunfar em momentos em que se exigia frieza e precisão, como são as partidas decisivas. Assim, ninguém achava que aquela seleção seria capaz de surpreender, até porque Pelé e Garrincha, nomes que se revelariam ao mundo justamente naquele torneio, ainda não passavam de promessas. Sem grandes cobranças a seleção jogou leve – mesmo sem os dois craques, que só estrearam no terceiro jogo – e venceu sem problemas.

Na copa seguinte, no Chile, o Brasil já chegou com o peso de ser o atual campeão e, junto com a expectativa de um novo sucesso – afinal Pelé e Garrincha já eram nomes consagrados, além de outros remanescentes de 1958 –, vieram as famosas cobranças. Por isso, a seleção experimentou talvez a sua primeira estreia nervosa, que se refletiu em campo. A vitória até veio, mas para que o todo-poderoso escrete canarinho conseguisse os dois pontos contra a Espanha, foi preciso contar com a ajuda da arbitragem. A seleção perdia por um a zero e o lateral Nilton Santos derrubou claramente dentro da área o atacante adversário. Pênalti que fatalmente representaria a derrota na estreia, pois ficar atrás por dois gols de diferença para o bom time castelhano não seria algo nada fácil de reverter. Um passinho malandro e providencial do atleta do Botafogo tratou de confundir o homem de preto, que marcou apenas uma falta. O episódio permitiu ao Brasil acalmar os nervos e virar a partida no segundo tempo, abrindo caminho para o bicampeonato.

No tri, oito anos depois, com uma seleção mais experiente, a estreia seria naturalmente menos tensa, poderia pensar alguém mais desavisado. Mas qual! Se não havia mais dentro das quatro linhas a síndrome da viralatice, existia por outro lado o fantasma do salto alto. No mundial anterior, com o Brasil bicampeão, já reconhecido como celeiro de craques e com Pelé no auge da sua forma, o mundo inteiro achava que dificilmente alguém ia segurar o nosso time. Mas a lógica foi contrariada pelo próprio comando da seleção, que fez uma preparação confusa, pouco comprometida com a competitividade de uma copa do mundo, que resultou num dos maiores fiascos, com o Brasil sequer passando para a segunda fase.

Em 1970, em meio a turbulências políticas, que também se refletiram na preparação, inclusive com a troca do treinador em cima da hora, a população revelava muita descrença de que pudéssemos repetir os êxitos de 58 e 62. Por isso a estreia com a seleção da antiga Checoslováquia foi carregada de nervosismo, que se intensificou quando aos 11 minutos do primeiro tempo o atacante Petrás abriu o placar para os adversários.

Mas o fato é que num time que, além de Pelé, tinha nomes como Gerson, Tostão, Rivelino e Jairzinho, nem a tensão do primeiro jogo, nem os problemas extracampo, teriam força suficiente para provocar a derrocada da seleção. Resultado: o Brasil colocou os nervos no lugar, empatou apenas treze minutos depois, venceu de goleada (4×1) e abriu caminho para mais uma conquista. Ainda com direito a um quase-gol de Pelé do meio de campo, em um dos lances mais famosos de todos os tempos, apesar de não ter resultado em gol.

Depois de ganhar três campeonatos mundiais em apenas doze anos, a seleção brasileira entraria num longo jejum de conquistas, passando em branco por cinco mundiais seguidos. Imagine então como deve ter sido tensa a estreia da Copa de 1994, ainda mais com mais uma preparação tumultuada, com o Brasil se classificando para o mundial já na bacia das almas. No entanto, a vitória da seleção por dois a zero contra a Rússia foi uma das estreias mais tranquilas para o Brasil em copas, o que prevaleceu por toda a primeira fase. Esse início, no entanto, não passou de um canto de sereia!

Todo o restante do mundial foi nitroglicerina pura para os nervos brasileiros. Uma classificação para as quartas de final com uma vitória extremamente suada contra a seleção dos EUA, anfitriã do evento; uma vaga para as semifinais obtida num jogo de alta tensão contra a Holanda; final conquistada numa partida pra lá de emocionante com um golzinho salvador de Romário quase no fim; e a final em que o título veio num zero a zero teimoso com a rival Itália, levando a decisão pela primeira vez para a disputa de pênaltis. Ufa! Uma conquista que certamente fez muitos testes cardíacos pelo Brasil a fora. Mas enfim veio o tetra!

Os títulos de 58, 70 e 94 acabaram colaborando para criar um novo ingrediente na mitologia do futebol brasileiro: a de que só ganhamos copas em que chegamos desacreditados. E o nosso último título mundial, em 2002, só confirmou essa regra. Com uma preparação pra lá de confusa, incluindo a passagem de quatro técnicos diferentes pelo comando da seleção, a expectativa com o desempenho da equipe era muito pessimista. Apesar de termos um respeitável time, muitos jogadores eram questionados, como Ronaldo, que vinha de grave contusão e era na verdade uma incógnita, e os laterais Cafu e Roberto Carlos, já com uma certa idade e para alguns já em declínio físico.

A seleção acabou trazendo o penta, mas a estreia refletiu as incertezas, numa vitória magra através de um pênalti duvidoso contra a então totalmente coadjuvante seleção da Turquia. Como em quase todas as outras vezes, o time cresceu ao longo da competição e chegou às fases mais avançadas, mas teve que passar pelo sufoco da estreia, deixando a torcida cheia de dúvidas quanto à possibilidade do título.

Por isso, quando a seleção brasileira adentrar pela primeira vez o gramado na copa da Rússia a torcida deve se preparar para a tensão pré-estreia que, como vimos acima, se tornou uma tônica das participações brasileiras em mundiais. É bem verdade que temos hoje um time confiável, que se classificou com grande facilidade, vem desempenhando um futebol de qualidade e acumulando bons resultados, que nos permitem sonhar com o hexa. Mas a julgar por toda a tradição do Brasil em copas, a torcida pode renovar o estoque de suco de maracujá e se preparar para emoções fortes. Mas tudo sempre com o otimismo que nos faz brasileiros. Vamos lá, Brasil!!!


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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