Reflexões sobre a natureza do trabalho


Marx é conhecido pelas doutrinas sociais e econômicas oriundas de seu sistema de pensamento, genericamente denominadas socialistas ou comunistas. Um número muito menor de vezes, porém, a sua filosofia é pensada a partir daquilo que talvez seja a sua maior contribuição para o pensamento ocidental: o trabalho. Para entender bem como se configura a filosofia de Marx nesse aspecto, uma boa maneira é entendê-la a partir do pensamento de W. Hegel, um outro filósofo alemão, do qual em parte é um herdeiro intelectual. Hegel dá fôlego a uma filosofia historicista em detrimento de uma abordagem naturalista. Isso significa que o homem é visto principalmente pela sua característica de ser histórico, isto é, que se transforma e aperfeiçoa perfazendo o chamado “devir”, e menos por sua condição estática de ser pertencente a uma ordem natural.

Para Hegel, a historicidade do homem se cumpre à medida que idealmente ele amadurece, o que dá, segundo o filósofo, origem aos avanços sociais e materiais. Aí aparece um primeiro grande rompimento de Marx em relação a seu antecedente intelectual. Para ele ocorre exatamente o contrário, na medida em que é a experiência humana no mundo concreto, histórico, que ocasiona o avanço “espiritual” do homem. E o principal elemento motivador do homem em direção a esse caminhar, que na verdade faz com que ele se configure como um ser diferenciado na natureza, é justamente o trabalho.

Mas Marx afirma que o homem é um ser natural, no sentido de que não só está inserido na natureza, como também é totalmente dependente dela. O filósofo reflete que a naturalidade do homem se expressa entre outras coisas pelo fato de que aquilo que ele precisa para “completar” o seu corpo existe de forma esparsa pela natureza. Assim, quando busca os elementos necessários à manutenção da sua vida, ele se insere numa totalidade da qual não pode se evadir e ao fazê-lo passa a desfrutar dos elementos diferenciais conferidos pelo trabalho. Assim, ao contrário do que é pensado por Hegel, a experiência da sobrevivência a partir da atividade do trabalho é que vai moldando o homem enquanto ser intelectual, ético, estético etc.

Esse papel do trabalho como fonte de progresso humano pode também ser entrevisto quando a antropologia propõe uma interessante reflexão a respeito de alguns sentidos derivados da palavra latina “cultus”. “Cultivo” é um deles, fazendo referência ao ato de manipular a terra e dela retirar os meios de subsistência, realizando a noção desenvolvida por Marx, segundo a qual através do trabalho o homem complementa aquilo de que seu corpo tem carência e necessidade. Levando em conta que as práticas agrícolas são apontadas pelos historiadores da natureza da espécie humana como um notável traço de desenvolvimento da sua experiência, pode-se concluir que cultivar é uma atividade estreitamente relacionada à afirmação e avanço humanos.

“Cultus” também dá origem a “culto”, que expressa uma atividade relacionada com os princípios éticos ou religiosos da espécie, na medida em que suas primeiras celebrações devem ter sido voltadas para cultuar os antepassados que, ao morrerem, eram depositados na terra, prosseguindo, ainda que em outra condição, a sua ligação com a comunidade, pois passavam a habitar a mesma estância de onde os que ficam retiram os seus víveres. Dessas duas noções, a de “cultivar” e a de “cultuar”, emergem os princípios daquilo que entendemos como “cultura”. Três termos diferentes, mas de origem comum e apontando para uma mesma realidade da espécie humana. É dessa forma que o trabalho de “cultivar”, que passa a ser uma atividade regular da espécie a partir de certo ponto de seu desenvolvimento, dá origem a expressões mais elaboradas e sofisticadas para o ser humano, como o sentimento religioso e o acervo cultural.

A cultura cristã é outro ponto marcante na história das visões sobre o trabalho. O pano de fundo em que Jesus apresenta seu discurso moralizador e propositor de novos valores são as profundas desigualdades sociais que se formam na Palestina do século I. Premidos pela cadeia de intensa cobrança de impostos desencadeada pela presença romana na região, os camponeses donos de pequenas propriedades e que constituíam a grande maioria da população entre os judeus (situação vivenciada por Jesus) sofrem intensamente com a pobreza que crescentemente se instala. O resultado daquela situação foi a eclosão de fenômenos como o banditismo social e o aparecimento dos chamados “profetas apocalípticos”.

O discurso religioso de Jesus emerge no bojo da busca de uma recomposição das formas de viver, que tem como inspiração uma visão erudita da própria tradição judaica em que a Palestina se insere. “A terra é de Javé”, dizem as escrituras, o que esvazia na visão dos pobres o sistema de valores sociais daquele período. É dentro dessa perspectiva que Jesus propõe procedimentos que ficariam fortemente relacionados a uma ética religiosa, como o desapego ao dinheiro (a César o que é de César) ou uma organização social propensa a desprezar valores “do mundo” e apostar em conceitos como solidariedade e fraternidade, dentro dos quais o trabalho passa a se desenvolver e ser considerado um bem sagrado.

Uma outra visão do trabalho que ganharia força, sobretudo no ocidente, a partir da Revolução Industrial foi a formulada pelo Liberalismo, que tem na figura de Adam Smith seu maior expoente. O pensador escocês destaca-se da maior parte de seus antecessores ao afirmar que é o trabalho, e não a terra, a parte mais importante do processo de produção de riquezas. Debruçado principalmente sobre a atividade industrial nascente no início do século XIX, Smith concebe o trabalhador como um elemento incluído num sistema orgânico de produção. Indo num sentido oposto ao da atividade artesanal, onde quem trabalha investe seus dotes pessoais, propõe o trabalhador como uma peça de engrenagem, funcionando em relação a outras partes da máquina e dedicando-se a um nível cada vez mais intenso de especialização, que, segundo ele, permitiria a maior eficiência na produção e consequentemente a maior geração de riquezas. O ponto mais importante dessa visão para a história do trabalho é que, anulado de sua função como agente direto na criação dos bens, o trabalhador teve de ser direcionado para uma nova escala de valores. É quando os sentidos de trabalho como satisfação da natureza ou como base de uma existência solidária dão lugar às noções hoje tão predominantes do trabalho como meio de aquisição de bens, viabilizador do consumo e propiciador de ascensão na escala social.

Modernamente têm surgido conceitos como o de “trabalho-lixo”, que seriam aquelas funções classificadas pelos próprios trabalhadores que o exercem como inúteis. Constituindo um número considerável dos postos de trabalho atualmente no mundo, algumas dessas funções poderiam ser tranquilamente extintas através das possibilidades cada vez maiores oferecidas pela tecnologia. Outras atividades, ao contrário, fundamentais para o bem-estar e o equilíbrio social – como o cuidado com os idosos e doentes, por exemplo – são desempenhadas como trabalho filantrópico ou voluntário, sem nenhum tipo de remuneração.

Num mundo do trabalho mais perfeito, que talvez se desenhe no futuro, amparado em propostas como renda básica de cidadania e uma jornada de trabalho muito inferior às atuais (acredite, essas propostas já existem!), por exemplo, é possível que sejam eliminados esses indesejáveis trabalhos, que são tratados como sinônimo de sofrimento e contrariedade. Em lugar deles talvez se estabeleça a situação em que todos poderiam se dedicar a atividades laborativas que sejam, antes de qualquer coisa, prazerosa para quem as realize. Atingido esse ponto, ao que parece, estaríamos mais próximos de uma visão do trabalho como complemento de uma natureza e consequentemente como fator de integridade interior do homem em lugar da fraturada humanidade imersa em lutas de poder e guerras fratricidas que vemos hoje.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.

Deixar comentário

Podemos ajudar?