O Brasil caipira e o Brasil dos barões


Historicamente a produção agrícola tem sido a maior referência econômica para o Brasil, representada na figura da chamada “grande lavoura”, isso desde o ciclo dos engenhos de açúcar até a atualidade com o agronegócio. O único momento em que esse modelo não predominou foi durante o ciclo do ouro, que pode ser encarado como uma espécie de oásis de riquezas em meio a duas grandes culturas econômicas baseadas na terra, o Brasil dos canaviais e o dos cafezais. Mas para entender como se deu esse percurso econômico, que serve de pano de fundo a importantes mudanças culturais, precisamos recorrer a uma outra atividade, diferente das mencionadas até aqui e com valor mais histórico e cultural do que de geração de riqueza.

Trata-se da atividade dos bandeirantes, que de um modo geral era voltada para a captura de indígenas para servirem como escravos nos engenhos que então começavam a se espalhar pelo país. Como se trata de uma atividade ainda incipiente, que mal chegava a constituir um mercado, as comunidades de bandeirantes acabam sendo mais relevantes, do ponto de vista histórico, pelas transformações culturais que provocam ao arrasar etnias indígenas, espalhando destruição e mortes e desequilibrando a vida social na colônia.

Mas um objetivo menos pronunciado orientava os bandos de mamelucos liderados por descendentes de portugueses que formavam o contingente das bandeiras: o sonho de encontrar veios de metais preciosos no interior do continente, que não tardaram a ser descobertos provocando uma até então inédita movimentação atrás do sonho do enriquecimento, que fez convergir para as regiões auríferas do centro e centro-oeste do país gente de todas as partes da colônia, além do aumento vertiginoso do número de portugueses que atravessaram o Atlântico atrás do tesouro escondido nas montanhas de Minas Gerais e logo depois nas novas capitanias Goiás e Mato Grosso.

As riquezas oriundas do Ciclo do Ouro deram origem à primeira grande conformação social e cultural no Brasil. Os vultosos recursos da exploração aurífera financiaram a instalação de um patrimônio material e institucional, que representou um grande salto civilizacional para a até então quase totalmente agreste colônia lusitana. Das fabulosas igrejas e prédios públicos erguidos por exploradores bem-sucedidos ao surgimento de uma elite intelectual e artística, o Brasil do ouro destoava de toda a realidade até aquele momento vivenciada pela população da colônia.

O declínio da economia baseada no ouro, que começa a se tornar realidade entre o final do século XVIII e início do XIX, com o quase exaurimento das reservas minerais, encerra esse único período da histórica econômica colonial que não se deu com ênfase na grande lavoura. A situação da população brasileira nos anos subsequentes ao ocaso da exploração aurífera era lastimável, revelando quadros de miséria e abandono que passaram a predominar em áreas não muito tempo antes ricas e prósperas. Ali continuaria vivendo basicamente aquela parte mais deserdada da população que nada pôde acumular dos momentos de prosperidade da produção do ouro, enquanto os que de alguma forma conseguiram se arranjar haviam partido para áreas que puderam continuar se desenvolvendo mesmo sem os recursos do ouro, como era o caso do Rio de Janeiro.

Uma gente pobre e sem expectativas, que se vê diante de um inusitado impasse, na medida em que está assombrada por duas visões de mundo sem poder de fato viabilizar qualquer uma delas. De um lado, uma situação que não permite mais o retorno a um modo de vida como o praticado pelos bandeirantes, num contexto onde não cabe mais o apresamento de indígenas e não há mais a expectativa de encontro de outras riquezas. Além do que, já havia se perdido o traquejo de vida itinerante que caracterizava seus ancestrais paulistas, depois de muito tempo engajados em atividades sedentárias que se estabeleceram em torno das cidades mais desenvolvidas. Tampouco lhes era possível prosseguir com o modo de vida urbano e com os hábitos e costumes que mal ou bem reproduziam a partir da referência de pessoas mais cultas e ilustradas.

Só restaria a essa grande parcela de brasileiros pobres a ocupação de terras abandonadas ou devolutas, nas quais praticar não mais que uma economia básica de subsistência. É nos imensos espaços naturais da chamada Paulistânia, em pequenas roças ou criadouros de poucos animais, que começam a se fixar, em capoeiras espalhadas irregularmente ao longo das matas e nas proximidades de rios, as primeiras famílias que constituiriam o Brasil caipira. Uma gente que trazia ainda a referência cultural do aventureiro bandeirante, com sua intimidade com a vida próxima dos espaços naturais, combinada com alguns toques da cultura materialmente superior do ciclo do ouro, como a prática religiosa e um certo gosto artístico expresso, por exemplo, pela presença de manifestações como a música e a dança entre suas atividades culturais.

Essa gente aos poucos vai viabilizando o que mais tarde começa a despontar como uma formação mercadológica em torno da produção agrícola e pecuária que de maneira cada vez mais sólida vai sendo praticada pelo caipira. Começam a ter forma as primeiras cidades, com o estabelecimento dos famosos “arraiás”, como ponto de encontro de gente espalhada por propriedades mais ao interior, e também as primeiras igrejas. Uma vida econômica e cultural que vai se dinamizando quase sem nenhuma ajuda do estado e sem qualquer tipo de empreendimento monetário, achando suas próprias formas de desenvolvimento a partir apenas da experiência aprendida de modos anteriores de viver.

É quando a vida e a economia do Brasil caipira atingem determinado nível de estabilidade que outros segmentos mais abastados despertam para as possibilidades de enriquecimento que ali se desenharam. Se antes estivera completamente ausente das iniciativas da população simples de buscar meios alternativos de viver, agora o poder público é um ator fundamental na organização da economia promissora que se estabelece a partir das fazendas do interior brasileiro.

Como seria de esperar, a ação do estado ocorreria conduzida pela influência de grupos abastados ou influentes que dali poderiam extrair benefícios. Instituindo leis ou obrigando o seu cumprimento e mobilizando todo um aparato legal, o caipira há muito tempo arraigado à terra, no modo de vida que ele próprio ajudaria a criar, começa a ser deslocado das novas possibilidades econômicas que se articulam, em favor de figuras poderosas, que começam a se estabelecer como o protótipo do que mais tarde seriam os grandes barões, uma elite aristocrática, quando a economia rural se viabiliza como mercado em nível nacional e passa a gerar riquezas para o país.

Cartórios que legalizam terras bem localizadas, antes pertencentes a famílias simples, que agora passam para a posse de grandes empreendedores, são instituições cada vez mais presentes no campo, muitas vezes servindo também para “esquentar” terras adquiridas por grileiros através da expulsão forçada de antigos caipiras. As famílias que conseguiam manter sua terra em situação de certa independência em relação às grandes estruturas produtivas estavam quase todas situadas em regiões de menor interesse comercial ou então tinham conseguido de alguma forma adequar a sua produtividade à de grandes fazendeiros, atuando como meeiros ou arrendando terras.

A transição do Brasil caipira para o dos barões do leite e do café que passaram a dominar a economia, sobretudo no sudeste do país, se faria à custa de muitas injustiças sociais e vergonhosas associações do poder público com interesses de poderosos. O caipira tradicional foi sendo gradativamente expelido de suas terras e do modo de vida que aprendeu a praticar a partir das parcas condições de vida que encontrou. Mesmo assim orgulhoso de seu passado e de suas origens, muitas vezes pareceu, aos olhos do país que enriquecia e desenvolvia à sombra dos cafezais, um tipo que representava o atraso e a inferioridade cultural.

Expressões como o adoentado e preguiçoso Jeca Tatu de um filho do baronato do campo como Monteiro Lobato refletem essa visão que o Brasil das classes dominantes passou a acalentar sobre um dos mais autênticos tipos culturais brasileiros. Nunca a de um personagem que soube reconstruir das ruínas de uma civilização decadente uma nova forma de viver e desenvolver, contando apenas com sua própria criatividade e a experiência de ligação com a terra. O país dos barões, que mais tarde serviu de base para o desenvolvimento que nos colocou entre as maiores economias do mundo, vai ser sempre tributário da força e da resiliência do caipira brasileiro.

 

Leia também: “O que não pode ser esquecido nas narrativas tradicionais sobre os bandeirantes”, em https://goo.gl/rqKaN4


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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