Matemática, uma ciência humana


“Tudo é número”, dizia o lema de uma sociedade secreta que reunia amantes de ciências afins ao que hoje entendemos por Matemática, como a aritmética (então vista como uma teoria dos números), a geometria, a astronomia e até a música. Quem acompanha as disputadas olimpíadas de matemática que atualmente mobilizam estudantes de todo o mundo não desconfia que estamos falando de uma ciência que, apesar de feita por números, se tornaria tão importante para outros campos do saber formados sobretudo pelas letras.

A sociedade secreta foi fundada no século VI antes de Cristo por uma figura que entraria para a história como um dos grandes gênios da humanidade, um certo Pitágoras. Nessa instituição, os membros se submetiam a uma rígida disciplina, na qual por exemplo se comprometiam a jamais revelar o que descobriam para quem não fosse membro da seita, além de obrigatoriamente deverem cultivar hábitos como a alimentação vegetariana.

Essa combinação de seita religiosa e escola de pensamento acabaria extinta algumas décadas depois quando a cidade em que fora fundada, Crotona, foi invadida e destruída por povos inimigos. O fim institucional da sociedade secreta provocou a descentralização dos muitos conhecimentos ali adquiridos e marcou o início de uma grande produção intelectual que seria a base do que normalmente se entende como “civilização ocidental”.

Ciência, religião e filosofia

O lado místico da seita se devia antes de tudo às convicções de seu fundador. Pitágoras acreditava na existência da alma e também que ela podia passar por novas existências, inclusive entre espécies diferentes. Algo muito semelhante à crença na metempsicose, que ainda hoje faz parte da teologia de religiões orientais, como o hinduísmo. Acreditava ainda que a alma dos virtuosos poderia até abandonar o ciclo de existências e libertar-se de vez da influência da carne.

Mas, apesar das muitas preocupações místicas, foram várias as contribuições de Pitágoras e seus seguidores para outros campos do saber, como a ciência e a filosofia. A começar pela fascinação pelos números, que deu origem a muitos conceitos e teorias que permitiram o avanço de inúmeros conhecimentos. A força do número faria com que a matemática se transformasse num campo de reflexões que ajudaria a explicar não apenas as grandezas e medidas, mas também a própria essência da vida.

Aristóteles, que se basearia em muitas afirmações de Pitágoras para desenvolver sua filosofia, apontou que os números simbolizavam no seu pensamento função semelhante à que, em outras escolas, eram ocupadas pelos quatro elementos, o que faria das relações entre os números o caminho para se entender e conceber o universo. Por conta desse pensamento, Pitágoras seria o pioneiro em descobertas que só mais tarde se tornariam consenso entre os estudiosos. A esfericidade da terra, por exemplo, já havia sido antevista pelo pensador, da mesma forma que a existência dos movimentos de translação dos planetas e de astros de grande magnitude (até aquele momento só a rotação era conhecida).

Talvez a mais impressionante descoberta de Pitágoras e seus seguidores, através de sua astronomia regada a cálculos numéricos, sejam as teorias que permitiram cogitar a hipótese de que a terra não fosse o centro do universo, tese que seria finalmente concretizada quase dois mil anos depois, quando Galileu Galilei divulgou seu sistema astronômico.

Os números por trás da arte

A música merece um capítulo à parte dentre as visões abraçadas pelos pitagóricos. Por um lado estava ligada a aspectos místicos e até psíquicos, pois era considerada um fator que purificava a mente e estimulava a inspiração dos sectários, predispondo-os a atingir um estado de alma em que o conhecimento fluísse mais livremente. A razão harmônica da música, segundo Pitágoras, servia para tranquilizar o pensamento e podia inclusive curar doenças.

Uma tradição dá conta de que o próprio pensador costumava tocar sua lira de sete cordas para os seus discípulos antes de iniciar as atividades da seita. Por outro lado, o estudo da música acabou abrindo um vasto campo para a compreensão de vários fenômenos que mais tarde figuraram no repertório das ciências. Por exemplo, a observação das grandezas musicais era utilizada para desenvolver explicações sobre o funcionamento do cosmos e conhecer as propriedades físicas dos sons.

Pelos séculos seguintes as ideias e descobertas de Pitágoras e seus seguidores continuaram a integrar o acervo do pensamento ocidental, principalmente em virtude das muitas referências que lhes foram feitas pelos filósofos clássicos, sobretudo Platão e Aristóteles. Consequentemente, as ideias da escola de Crotona prosseguiram sendo divulgadas e estudadas ao longo da Antiguidade greco-romana.

Há estudos que comprovam que no século II da Era Cristã ainda havia vestígios das crenças pitagóricas entre as muitas religiões que figuravam no panteão do Império Romano. Com o advento da cristandade como religião oficial de Roma, a partir do século IV a. C., as seitas mais influenciadas por conceitos provenientes das suas ideias passaram a ser perseguidas até praticamente desaparecerem. Foram, porém, divulgadas e estudadas abertamente por aproximadamente doze séculos.

Em nenhum outro momento do pensamento humano a ciência dos números seria tão valorizada como conhecimento base para outros domínios, como naquele período em que a sociedade secreta fundada por Pitágoras manteve suas atividades. A matemática e os conhecimentos a ela relacionados caminharam sempre mais no sentido de sua especialização como ciência autônoma divorciada de outras estâncias do saber, como as humanidades ou os estudos da natureza. Mas, ainda que de forma fragmentada, toda a história do conhecimento ocidental traz a chama daqueles recuados seis séculos a. C. e das ideias e descobertas do grande visionário que foi Pitágoras.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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