A construção da imagem de Tiradentes


Uma abordagem básica possivelmente revelará que Tiradentes é o herói preferido dos brasileiros, ficando à frente de nomes de grande apelo popular, como o líder Zumbi dos Palmares ou o arrojado D. Pedro I. Apesar de a história popularmente divulgada do Mártir da Inconfidência estar repleta de elementos de valor universal, como os ideais de liberdade e justiça, o fato é que a boa imagem do inconfidente é fruto da tentativa de acomodar esse momento da história aos objetivos de quem esteve nas proximidades do poder.

Foi na República que a imagem de Tiradentes começa a ser trabalhada de forma consciente e intencional. O movimento militar, de base positivista, que derrubou a Monarquia tinha em mente o objetivo bem explícito de atuar no imaginário da população, reduzindo a influência que o sistema colonial imprimira ao longo de mais de três séculos. Tiradentes era alferes, lutava pela instalação de um regime republicano e único condenado à morte na conspiração. Elementos, portanto, bastante interessantes para um regime que visa destronar a religião (sempre característica da realeza dos antigos colonizadores) e estimular valores cívicos no lugar dos atos de devoção. Para isso, não faltou a exaltação da ciência ao se valorizar o trabalho de historiadores, voltados para difundir a grandeza de heróis e personagens passíveis de seduzir as massas.

Seria justamente de um desses trabalhos que viria um importante apoio historiográfico que os republicanos empregariam para solidificar o nome de Tiradentes. A obra do historiador Joaquim Norberto de Souza, escrita em 1873, é uma das primeiras a esmiuçar a figura e o papel do alferes da Conjuração e consequentemente encaminhar o seu lugar na história. Baseado em informações de testemunhas oculares, o escritor compõe toda uma narrativa capaz de enfatizar a dramaticidade da prisão e execução de Tiradentes e seu caráter de herói que solitariamente assume a culpa, de algum modo salvando a pele de outros conspiradores. Não faltaria na descrição do historiador nem os atributos cristãos destinados a cooptar a simpatia do religioso povo brasileiro para o nascente herói da nação. Ali aparece um condenado disposto a beijar os pés do carrasco como quem pede perdão pelo pecado da insubmissão. Uma postura que não seria muita esperada por quem imaginasse um militar destemido e altivo frente à monarquia que o queria liquidar, mas que serviria para ilustrar uma imagem de cordeiro imolado que tanto seria atrelada ao herói da Inconfidência.

Apesar de pioneiro nas narrativas do herói da Inconfidência, dando assim o ponto de partida que a república mais tarde cooptaria a seu favor, Joaquim Norberto fornece na mesma obra um exemplo de como a história de Tiradentes era contada antes de ser proposto como herói da pátria. Em outro ponto o historiador o descreve como “feio, ignorante, falastrão, pobre e inconveniente”, e até disserta sobre a (pouca) importância do alferes na conjuração, afirmando que ele “foi admitido nos meios inconfidentes e ainda, por irresponsabilidade, colocou tudo a perder”. Pintado, assim, como uma espécie de estranho no ninho, despreparado e incompetente, em meio a homens de maior valor. Exatamente o oposto da imagem construída após a república, quando Tiradentes é a pérola de coragem, desprendimento e bravura em meio a conspiradores que negaram a participação para salvar a própria pele. Norberto, na verdade era monarquista e teve relações pessoais com D. Pedro II, o que explica o julgamento pouco condescendente com o alferes. Postura aliás semelhante à de outra importante figura das letras nacionais, considerado por muitos o primeiro grande historiador brasileiro, que foi Varnhagen, que descreve Tiradentes como um sujeito antipático, bruto e por isso incapaz de funcionar como um nome de peso do movimento.

Outra importante fonte de construção da imagem de Tiradentes foram as artes plásticas, que se encarregaram de fixar a dimensão visual do alferes, de algum modo completando as descrições que já haviam sido feitas pelas letras. Além da já citada acima, de autores simpatizantes da monarquia, pode-se citar a que foi registrada pelo ferrenho republicano Silva Jardim, que sugere um Tiradentes de “olhar notável”, de tipo físico másculo e “eloquente em suas palavras e gestos”, um perfil certamente mais próximo do herói nacional. Nas telas, o confronto de narrativas também persistiria. Aurélio de Figueiredo pintaria um Tiradentes no cadafalso, no momento crucial de sua condenação, com aparência sóbria e sugerindo uma aparência crística, uma visão enfim bem ao gosto do projeto republicano, combinando o cívico e religioso. Outro grande pintor dos fatos históricos nacionais, Pedro Américo, adotaria uma postura bem mais incisiva e polêmica, ao retratar em seu “Tiradentes Supliciado” o lado bárbaro da Inconfidência. Ali o mártir aparece com a cabeça separada do corpo e ao lado de uma cruz, enquanto seus membros aparecem espalhados pelo quadro.

Para compreender bem a possível mensagem da tela é importante penetrar no contexto de sua concepção. Pedro Américo criou o quadro num conjunto de outros quatro estudos voltados para retratar a Inconfidência. Num deles aparece Tomás Antonio Gonzaga a bordar um vestido, numa referência ao dado propagado nas narrativas tradicionais de que o poeta, ao ser acusado pelas autoridades da coroa portuguesa, negava a sua participação alegando que, mesmo estando no mesmo local em que os conjurados se reuniam, ocupava-se no momento em bordar o vestido que sua amada (expressa em seus poemas árcades com a alcunha da famosa “Marília de Dirceu”) usaria no casamento que ocorreria em poucos dias.

Ao optar por pintar essa parte da conjuração utilizando esse fato, Américo provavelmente chamava a atenção para a realidade do movimento. Gonzaga era apontado como o principal articulador da revolta, mas quando acossado não se importaria em se apresentar como um lunático apaixonado a ponto de se dedicar a uma atividade feminina em devoção a sua amada. A versão mais divulgada desse momento dá conta também de que o poeta ajoelhara-se no chão diante das autoridades implorando clemência. Enfim, um líder da pioneira tentativa de desafiar o poder do colonizador que demonstra uma postura muito aquém da que se pode esperar de conjurados aplicados em momento histórico tão eloquente como teria sido a Inconfidência.

Dentro desse contexto, o quadro de Pedro Américo, ao retratar um herói em pedaços, poderia estar se referindo a um Tiradentes que perfaz o percurso do personagem da tragédia no sentido retratado no teatro grego. Primeiro a felicidade, expressa no fato de um simples e pobre alferes aventurar-se em uma ambiciosa empreitada revolucionária ao lado dos homens mais abastados da colônia; em seguida o erro, que não permitiu que ele detectasse a debilidade do movimento que sequer podia contar com um líder de valor; por fim a tragédia de um personagem que enfrenta solitário as consequências, ao ser o único sentenciado à pena capital. Um Tiradentes impotente frente às tramas do destino e mais longe por isso do tipo destemido e bravo que se espera do herói proposto pela república.

A força do mito criado em torno do herói Tiradentes de algum modo impediu que chegasse ao alcance de um público maior algumas tentativas de releitura histórica do alferes. Uma delas, aliás bastante radical, levanta a hipótese de que sequer o inconfidente teria morrido por execução. A partir de pesquisas históricas, o historiador Marco Antonio Correia teria feito menção à presença em 1793, mesmo ano em que teria sido executado, do nome Joaquim José da Silva Xavier em uma lista de presença da Assembleia Nacional Francesa. A hipótese do historiador é a de que outra pessoa fora para o cadafalso em seu lugar, enquanto o alferes, ajudado pelo poeta Cruz e Silva, seu companheiro de loja maçônica, conseguiu escapar da pena capital.

Documentos contendo depoimentos de pessoas que acompanharam a execução, dando conta de o condenado não aparentar a idade atribuída a Tiradentes, ajudam a sustentar essa tese, além de muitas lendas populares até hoje veiculadas pelo interior de Minas Gerais, que tratam da mesma possibilidade. Esse dado histórico chegaria a ser publicado num jornal de grande importância do país, mas, apesar da possibilidade intrigante e inusitada, não despertou maiores considerações.

 

Ao contrário, a narrativa tradicional da história do Mártir da Inconfidência tem se mostrado cada vez mais sólida no imaginário popular, haja vista a quantidade de produções no campo das artes e da literatura que pouco se debatem quanto ao já consagrado pelo senso-comum nacional. Discursos políticos e evocações à memória e ao heroísmo de Tiradentes se espalham tranquilamente pelo país, mostrando a acomodação do Brasil a seu herói preferido, tal como pintado pela República em seu objetivo de levar adiante seu projeto de nação.

*A arte que ilustra a postagem é de autoria de Luiz Cláudio de Oliveira.

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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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