Qual o significado de Palmares para a história do Brasil?


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“Luiz Gama, uma voz pela liberdade” você assiste pelo benefício Bom Espetáculo.

E mais uma vez nos deparamos com mais uma edição do Dia da Consciência Negra, uma data que deveria propor a todos nós reflexões em torno da figura a ser lembrada nessa data. Para muitas pessoas a história de Palmares é algo que somente interessa aos afrodescendentes do Brasil, mas um olhar mais cuidadoso pode revelar que, muito mais do que um fruto natural dos tempos de escravidão, a história de Palmares nos coloca diante de questões ainda muito atuais, o que coloca a releitura desse momento da vida brasileira como algo fundamental.

Assim, não faria mal alguns momentos de diálogo com os historiadores que têm se dedicado a compor uma imagem tanto quanto possível real da saga do nosso mais famoso quilombo. Algumas das coisas que as pesquisas históricas têm demonstrado dizem muito mais a respeito do Brasil como um todo do que apenas da sua população de origem africana.

A questão racial é uma delas. Sendo o quilombo formado inicialmente por escravos fugidos, é provável que tenha tido uma população feminina muito pequena, porque havia poucas mulheres entre os cativos dos engenhos de Pernambuco. Escavações arqueológicas realizadas já no século XX na serra da Barriga revelaram muitos objetos de cerâmica, típicos de etnias indígenas daquela parte do Nordeste do Brasil.

Como esse tipo de atividade era em geral uma tarefa atribuída às mulheres, é bem provável que o número de índias fosse bem considerável, muitas até raptadas para suprir a carência. Isso quer dizer que a expansão populacional em Palmares deve ter ocorrido através de cruzamentos inter-raciais, que podem ser inclusive a constituição do próprio Zumbi, já que não se dispõe de informações precisas sobre sua origem. Um Zumbi curiboca, talvez. Há também o quase consenso entre historiadores de que lá também viviam brancos, em geral pessoas perseguidas por autoridades ou poderosos. Logo, Palmares é um dos grandes exemplos de convivência inter-racial ao longo da nossa história.

A condição das mulheres no quilombo é um outro dado importante para os dias de hoje, num Brasil onde elas ainda lutam por igualdade. Alguns historiadores acreditam que a pouca presença feminina tendeu a fazer de Palmares uma sociedade em que as mulheres deviam ter vários maridos. Sendo mães e pertencentes a vários núcleos familiares, era muito provável que vivessem num nível de afirmação e proximidade com os homens muito maior do que em qualquer outro lugar do país. Deve ter sido mais difícil impor a elas a supremacia que na cultura hebraico-cristã confere aos homens o direito de exigir fidelidade e monogamia, a eles sendo permitido todo tipo de desvio da estrutura familiar tradicional.

Palmares talvez tenha sido também o lugar menos desigual do Brasil. Exposto por tantos anos a ataques e investidas, devia haver algum tipo de pacto que levasse as pessoas a lutar e manter a cumplicidade necessária numa guerra prolongada, algo mais que a simples imposição de autoridade ou uso da força. Mesmo que tenha havido divisões de classe em Palmares ou que alguns desfrutassem de ascendência sobre grandes massas, o distanciamento social no quilombo não deve ter chegado aos pés do que havia no poder das oligarquias brasileiras e do nível de submissão dos menos favorecidos frente a verdadeiros senhores feudais da época.

Muitos heróis nacionais também estiveram entre os rebelados de Palmares. Vários estudiosos apontam que o crescimento populacional do quilombo deve ter ocorrido depois de 1650, quando os holandeses são enfim expulsos de Pernambuco. Só aí Palmares volta a ser prioridade para os grandes proprietários. O avanço demográfico foi incrementado com a presença de muitos escravos que foram recrutados por seus senhores para integrar guerrilhas que lutavam contra os batavos. Fortalecidos e armados, se aventuraram a buscar a liberdade entre seus irmãos de cor, e para lá levaram as marcas das lutas para defenderem as possessões de Portugal. Esses merecem ser chamados de heróis da mesma forma que outros não brancos que, no mesmo conflito, receberam o reconhecimento da história, como o negro Henrique Dias e o índio Felipe Camarão.

Muito além de uma simples reunião de escravos, Palmares pode ser encarado como um resumo do Brasil do século XVII. Uma reunião de seres humanos multirraciais, escravizados, perseguidos pela ambição do regime colonial. E não está assim tão distante do Brasil de hoje quanto se poderia esperar. Mesmo assim, talvez jamais tenha havido em qualquer outro ponto do Brasil um contexto onde igualdade racial, distanciamento social, relação entre gêneros e sociedade solidária registrassem uma situação tão próxima de um país melhor e mais justo.

A saga de Palmares foi um evento tão marcante para as lutas da sociedade brasileira, que acabou por inspirar pessoas em muitos outros momentos marcantes da construção do país, como a Revolta da Chibata, a Guerra de Canudos e, claro, a Abolição da Escravatura, com os muitos discursos dos grandes oradores e jornalistas da corte no Rio de Janeiro evocando a coragem e desprendimento de Zumbi e o contexto de união e luta que levou o famoso quilombo a se manter por quase um século.

Luiz Gama, o “advogado da Abolição”, foi uma das mais importantes vozes em favor da igualdade racial no Brasil e em vários de seus discursos citou a saga de Palmares. Você conhece mais sobre a vida desse grande lutador pelo fim da escravidão no país, assistindo a peça “Luiz Gama, uma voz pela liberdade”, presente no benefício Bom Espetáculo.

Leia também: “Nem tudo foi cumplicidade e omissão na relação entre Igreja e escravidão na América”.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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