Os santos gêmeos e a cura pela pureza das crianças

Os santos gêmeos
“São Cosme e Damião” pelo pintor barroco espanhol André Perez (1660 – 1727).

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Os dois santos médicos teriam vivido e sido martirizados no século III, sendo mais duas vítimas da chamada Era dos Mártires, que diz respeito a mais um grande ciclo – o mais longo e talvez mais cruel de todos – de perseguições desferidas contra os cristãos, antes do seu grande perseguidor, o Império Romano, render-se ao culto ao rabi da Galileia, o que só vai ocorrer em torno do século IV. Os dois teriam nascido, segundo a maior parte dos biógrafos, no século III, numa localidade pertencente à grande região da Arábia, de família de posses, ligada à nobreza, enquanto para outros não chegavam a tanto, sendo porém ligados a grandes mercadores, atividade das mais ativas naquele lugar e época. Seus nomes seriam na verdade Acta e Passio e consta que ainda adolescentes migraram para outra região onde iniciaram suas atividades ligadas ao que na época se entendia por medicina.
 
A família teria ido tentar vida nova na Cilícia, no sul da Turquia, um local que nos primeiros séculos da era cristã abrigava uma grande movimentação de pessoas, interessadas nas atividades comerciais e nas universidades que funcionavam principalmente na mais importante cidade da região, Tarso, um efervescente centro cultural. É mais provável, porém, que seu destino na região tenha sido a Egeia, pois grande parte dos historiadores do cristianismo considera essa região como de palpitante atividade cristã. Por isso havia ali uma considerável presença de seguidores que, embora minoria e não contando com a boa vontade das autoridades romanas, expunham suas ideias apresentando os ensinamentos do Cristo.
 
Em momento de forte perseguição, não demoraram a ser acusados formalmente pelas autoridades, já que naquela altura era permitido levar a julgamento os que não apresentassem uma comprovação oficial de que eram participantes dos cultos do paganismo. O império havia instituído uma espécie de declaração, o Libellum, que atestava que determinada pessoa era adepta dos cultos pagãos. Muitos cristãos, temendo perseguições e o confisco de seus bens, compravam clandestinamente o documento ou o obtinham através de amizades com acesso à burocracia estatal. Mas os irmãos Cosme e Damião não estariam entre aqueles que abjurariam da fé para garantir a própria pele. Na frente dos juízes e dos senadores romanos não se furtaram a assumir a sua crença, de modo que, com tamanha ousadia, o destino dos jovens não podia ser outro a não ser os suplícios, que se prestavam a provocar à força a abjuração dos crentes cristãos.
 
Próximo ao final do século V, já populares por toda a Europa, o Papa Felix IV mandou construir em Roma uma basílica em homenagem a eles e, no século seguinte, com o Império Romano já tendo adotado o cristianismo como a sua religião oficial, o imperador Justiniano, ao revitalizar a província da Síria, onde estavam sepultados, mandou erguer um suntuoso templo capaz de atender à grande popularidade de que já dispunham naquela ocasião. Pelos seus feitos ligados à medicina, foram tomados como referência de várias instituições consagradas a essa atividade.

No século XI já havia sido fundada a primeira ordem de que se tem conhecimento em honra aos dois santos irmãos. A instituição se consagrava à fundação de hospitais e ofertas de serviços médicos, e já haviam inaugurado várias instituições por toda a região da Palestina. A ordem seguia as regras estipuladas por São Basílio, com os membros usando o hábito branco com a cruz vermelha e, na altura do cruzamento dos braços, uma coroa com a imagem dos dois santos. A mais antiga e conhecida associação médica da Europa, fundada no século XIII, a Confrérie et College de Saint Côme, que só viria a ser extinta quando da Revolução Francesa, os adotou como patronos. E, já no século XIX, quem quisesse obter o diploma de medicina ou de boticário devia pagar determinada quantia a uma importante irmandade vinculada aos santos Cosme e Damião.
 
Também ligada aos poderes de cura atribuídos aos dois irmãos está o procedimento conhecido na época como incubação, em que os enfermos se internavam nas igrejas dos santos e lá ficavam por muitos dias, como se estivessem recebendo um tratamento. Essa prática é certamente uma sobrevivência da antiga terapêutica do paganismo grego, praticada no chamado Asclepieion, templo dedicado a Esculapio, o deus greco-romano da medicina. Lá os enfermos se instalavam por dias e recebiam a cura através de sonhos, que eram relatados ao sacerdote do templo que então, a partir dos relatos, prescrevia o tratamento.
 
A associação dos dois irmãos com as crianças também deve ter colaborado para a construção de sua imagem. Afinal, sem os conhecimentos e os aparatos da medicina atual, era muito grande, no passado, o número de óbitos de crianças. Morria-se desde complicações no parto até problemas ligados à desnutrição e doenças ocasionadas pela total ausência de saneamento básico. Por tocar fundo na alma dos pais a morte de crianças em tenra idade, muita promessa e pedidos foram endereçados os dois irmãos santos e, a cada graça que lhes era atribuída, mais ia crescendo a devoção, inspirando naturalmente a construção de novas igrejas e novas festividades.
 
A devoção aos santos irmãos no Brasil veio, como é natural, com os colonizadores portugueses. A importância histórica de São Cosme e São Damião para nós é muito grande, pois foi em sua honra que se ergueu o primeiro templo católico do país, na cidade pernambucana de Igarassu, em 1530. A Igreja Matriz de São Cosme e São Damião constitui hoje um importante centro de visitação pelo seu conteúdo histórico, pois sua construção está ligada não apenas aos primeiros anos da colonização brasileira, como a outro importante período histórico: o da ocupação dos holandeses, que, nos conflitos bélicos pela disputa da região, saquearam e destruíram o templo no ano de 1634, sendo ela reconstruída duas décadas depois.
 
As rezadeiras do Brasil, espécie de curandeiras que muitas vezes substituem profissionais de saúde e às quais muitos atribuem poderes especiais de cura, são outro segmento que mantém estreita ligação com São Cosme e São Damião, com muita frequência evocando figuras dos dois gêmeos na hora de benzer as crianças e sanar os males típicos dessa faixa etária. Com galhinhos de plantas e orações específicas aliviam as espinhelas caídas, os nervos torcidos ou os ventres virados da garotada. Elas simbolizam, de alguma forma, a união de dois aspectos dos santos gêmeos, a cura e as crianças. Do mesmo modo, é quase generalizado entre elas o costume de não aceitar qualquer tipo de pagamento por suas rezas.
 
Os tradicionais doces distribuídos em homenagem aos dois também apresentam um caráter caritativo, pois afinal são alimentos que nutrem o corpo e oferecidos sem que se peça em troca qualquer coisa, motivo pelo qual a própria Igreja Católica estimula a prática de dar doces, mesmo sendo algo instituído a partir de uma visão típica dos cultos afro-brasileiros. Aliás, no dia dos santos as atividades nos templos católicos é tão intensa como a que ocorre nos terreiros de religiões de matriz africana, sendo muitas vezes os festejos praticados de forma conjunta, com os crentes assistindo as missas e participando das giras que são feitas em honra aos erês. O culto brasileiro a São Cosme e São Damião é uma das grandes demonstrações da religiosidade sincrética de nosso povo, pois envolve muitas relações históricas e míticas, que atravessam o tempo e o espaço e vão se fixar nas crenças aqui praticadas. Ao mesmo tempo todo o mito, o folclore, a devoção e a fé que estão envolvidos no culto aos dois gêmeos podem ter a função de manter vivo e atuante o lado criança presente em cada um, habitualmente deixado de lado nas lutas e exigências na vida moderna.
 
Assim, o culto à infantilidade, como o expresso em São Cosme e São Damião, é um modo brasileiro de retornar a suas origens, de estar atualizado com seus valores, normalmente postos em perigo à proporção que a vida no século XXI, com seus apelos racionais e tecnológicos, avança e determina estilos de vida e maneiras de viver. São Cosme e São Damião são a forma mais comum de as crianças brasileiras tomarem seus primeiros contatos com a religiosidade. O sagrado lhes chega de modo brando, doce, onde são postos em contato direto com as entidades de outra esfera, como iguais, crianças como elas. Essa experiência do crescer por caminhos tão singelos é, talvez, um pano de fundo que ajuda a sustentar a índole relativamente pacífica, solidária e sobretudo alegre dos brasileiros. E os santos gêmeos, persistindo na lembrança de cada criança do Brasil, têm sua parte nisso.
 

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