A história de São Sebastião


Já houve quem dissesse que um santo é uma espécie de ser de duas histórias. Uma feita por ele mesmo, durante sua vida, e outra, após a sua morte, construída pela fé dos crentes. São Sebastião, o militar de Narbonne, martirizado no século III da cristandade, é um grande exemplo. A combinação de mártir e combatente parece ter se revestido de um valor muito especial no olhar dos seus devotos, principalmente na superimaginativa mente dos homens medievais, responsáveis pela criação de grandes simbioses entre o profano e o sagrado.

Estes o qualificaram por supostamente interceder na cura de doenças e moléstias, como ocorreria principalmente em momentos graves como o da peste negra, no século XV. Dentro disso, cabe destacar a relação que foi construída entre São Sebastião e as chamadas Lendas Carolíngias, conjunto de contos cavalheirescos que em princípio buscam retratar os feitos bélicos de Carlos Magno, em sua saga de unificar a Europa Ocidental sob um único reino cristão. No contexto da Idade Média, porém, esses relatos deixam de ser meras narrativas de acontecimentos passados para alcançar a condição de contos fantásticos, regados aos mais diversos aspectos místicos e misteriosos, verdadeiras pérolas da literatura.

Aqui no Brasil, durante a guerra do Contestado, por exemplo, os contos Carolíngios já eram de conhecimento popular e não foi difícil que toda a crença daqueles tempos associasse os Pares de França (a famosa guarda pessoal do rei Carlos Magno) ao exército de São Sebastião, todos reunidos e organizados para lutar pela justiça e pelo restabelecimento da paz naquela região do sul do Brasil. Levado àquele contexto de espera messiânica através do mito português do retorno do homônimo Dom Sebastião, o santo também seria relacionado à dinastia fundada pelo “Pai da Europa moderna” porque partilhava com ela dos mesmos dons de cura.

Certa tradição prega que aos reis da dinastia anterior (os Merovíngios) eram concedidos excepcionais poderes curativos pois supunha-se que esses monarcas eram descendentes de uma linhagem que remontava ao próprio Jesus. Carlos Magno depõe os reis dessa dinastia, mas a fé em seus poderes permaneceria no ideário popular, agora transferida para os Carolíngios apesar de estes não estimularem essa crença e nem praticarem atos nesse sentido. Dessa forma, o beato José Maria, figura importante do conflito do Contestado, ainda que de modo totalmente inconsciente, não teria feito outra coisa senão promover, nas primeiras décadas do século XX, um retorno a um mito medieval muito antigo, conseguindo com isso mobilizar forças para as lutas que se estabeleceriam no sul do continente americano, ainda que o seu objetivo fosse apenas ser um instrumento da justiça de Deus e não aparecer como um revolucionário rebelde.

E ao se falar da presença de São Sebastião na cultura brasileira não se poderia jamais deixar de lado a relação do santo com a cidade do Rio de Janeiro. Essa história se inicia já no século XVI quando o antigo militar foi “visto” em plena luta dos portugueses contra os franceses aliados aos índios tamoio, na Batalha das Canoas em 1566. Pouco antes disso, em outro conflito travado nas águas da baía de Guanabara, os portugueses teriam conseguido escapar de forma inacreditável de um assalto de índios inimigos. A situação era tão dramática, que não ter sucumbido foi considerado um grande milagre e, naturalmente, atribuído a São Sebastião. O acontecimento foi muito comentado pelas tropas portuguesas ao ponto de ser aumentado e constituir mais uma espetacular lenda ligada às suas supostas virtudes guerreiras.

Para aumentar ainda mais essa ligação da então futura capital do Brasil com o santo, a batalha final que frustrou os planos de estabelecimento da França Antártica, expulsando definitivamente os invasores, ocorreu num 20 de janeiro, dia a ele consagrado. Completando o quadro, o fundador da cidade, Estácio de Sá, seria morto em combate, do mesmo modo que o militar romano, só que com uma flecha lhe atingindo o rosto. Ironicamente, ao fundar pouco tempo antes a cidade em homenagem ao santo, Estácio estabelecera o brasão con­tendo as três flechas cruzadas, que até hoje está presente na insígnia da Cidade Maravilhosa.

Com a imensa popularidade na cultura brasileira, e com o caráter guerreiro e destemido de sua história, São Sebastião obviamente não deixaria de ter importância também para as manifestações da religiosidade indígena e afro-brasileira. O sincretismo que vai se construir em torno da figura do santo é bastante sin­gular por envolver simbologias religiosas das três raças que em tese compõem a cultura brasileira. Primeiro porque é associado a Oxóssi, o orixá do panteão iorubá que se notabiliza pelos seus atributos de caçador, sendo considerado o senhor dos animais mais temidos do ambiente natural africano, como os elefantes e rinocerontes. Como seus instrumentos de caça são o arco e a flecha, o sincretismo vai relacioná-lo ao martírio de São Sebastião, que resistiu aos ataques dessa mesma arma da qual Oxóssi é mestre.

Por outro lado, a habilidade de caçar nas savanas foi adaptada na vinda da crença desse orixá para o Brasil, passando ele a ser agora senhor das matas tropicais. Nessa nova configuração, Oxóssi se identifica com a cultura indígena brasileira e, de alguma forma, se “cabocliza”, passando a figurar também nas crenças nas divindades dos nativos da América. Torna-se assim o protetor de todos esses habitantes das florestas, deixando de ser o terror das caças e passando a ser o seu grande protetor.

Em seu novo “habitat” Oxóssi também é relacionado ao domínio de outros habitantes das matas além dos animais, como as folhas e ervas, base dos artigos terapêuticos nas culturas indígena e cabocla. A Oxóssi então se recorre na cultura popular para as curas e tratamentos a partir da força dos vegetais presentes nas matas. A fé em São Sebastião, que também é da alçada popular pela via da religião dos colonizadores europeus, em nada se conflita com a crença nos atributos terapêuticos de Oxóssi, haja vista que ele é o santo das pestes, ao qual se recorre nas grandes epidemias e para as mais diferentes enfermidades.

A devoção a São Sebastião é um grande exemplo de como a trajetória de uma personalidade através dos tempos pode receber novos elementos e responder a outras configurações culturais. De uma história carente de maiores comprovações historiográficas de um militar do século III depois de Cristo pode emergir uma série de novas motivações que culminam em eventos que são efetivamente história. A fertilidade criativa e dinâmica do mundo da Idade Média do ocidente cristão encontra acomodação no misticismo do mundo afro-indígena brasileiro e adapta um personagem a um novo contexto, que serve a novos anseios humanos. É quando o mito produz história, e a história garante a permanência do mito.

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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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