William Shakespeare e suas obras

William Shakespeare e suas obras
“Romeu e Julieta”, do pintor inglês Ford Madox Brown (1821-1893).
Willian Shakespeare viveu e produziu sua prodigiosa obra no século XVI, em um momento em que a criação artística era concebida a partir do reconhecimento da excelência dos nossos antepassados da Antiguidade greco-romana, conforme propunham os ideais do Renascimento. No entanto, a enorme contribuição do bardo inglês para a história intelectual do Ocidente seria muito melhor aproveitada quase três séculos depois, quando a Europa do Oitocentos, depois de passar pelas experiências intelectuais de escolas como o Iluminismo e o Empirismo, redescobriria seu valor e, mais que isso, o ergueria à condição de uma das maiores referências, não só da arte e da cultura, mas também da própria capacidade de entender a condição humana.
 
Shakespeare não seria inicialmente concebido com a aura de genialidade com a qual hoje o entendemos. No século XVII, por exemplo, fora quase que completamente esquecido e, no seguinte, sua obra apareceria algumas vezes ironizada em trabalhos de críticos altamente tributários da razão, como Voltaire. Alguns fatores ajudam a explicar a causa desse ostracismo. Um deles talvez esteja ligado a sua biografia e às condições em que produziu seus textos. Shakespeare vinha de origem popular e sua formação destoava em alguns pontos daquela que foi recebida por outros grandes nomes de referência.
 
Esse fato levaria a um certo exagero por parte de críticos mais acirrados de sua obra, pois, apesar da ausência de certas insígnias acadêmicas, o bardo jamais deixou de contar com uma formação de alto nível, o que significa dizer que teve acesso a conhecimentos, como a cultura clássica, a mitologia greco-romana, a tradição narrativa de autores italianos e tudo o mais que, podia-se dizer, estaria ligado a uma formação artística e literária de alto padrão. A forma com que constituía suas peças deve também ter colaborado para uma visão de que certas discrepâncias de suas obras podiam ser explicadas por uma formação deficiente ou pela origem popular.
 
Shakespeare é tido como um ator avesso a uma disciplina na organização dramática considerada pelos críticos como essencial na tarefa do dramaturgo. Procedimentos teatrais tipicamente shakespeareanos como interpenetrar elementos da tragédia com os da comédia, introduzir subtramas nas peripécias principais da peça e conduzir a história em vários locais diferentes, o que forçava a existência de muitos cenários em um mesmo espetáculo, eram tidos como inaceitáveis no entendimento de críticos fortemente influenciados por uma concepção francesa de obra de arte, que apostava no cumprimento de padrões historicamente consagrados por autores do passado como um caminho obrigatório para o bom dramaturgo. Shakespeare também não se preocupava com a divisão dos atos da peça, que se alternavam de forma às vezes bastante sutil, dando aos críticos uma impressão de indisciplina e insubmissão aos padrões clássicos, que levaram muitas vezes a tentativas de ironizar os seus textos e atribuir tais características à ausência de uma origem nobre.

As condições de produção e encenação das peças de Shakespeare também colaborariam para a disseminação dessa visão sarcástica e desvalorizada por parte dos críticos a ele contemporâneos. Influenciado pelas condições da vida sob o reinado de Elisabeth I, o teatro era visto tanto por sua filiação à herança de grandes autores da Antiguidade Clássica, quanto por uma atividade que podia servir ao entretenimento das massas. Isso faria com que os textos de Shakespeare fossem muito assistidos por gente do povo, o que levaria o autor a incluir em sua criação elementos que pudessem causar impacto também nesse segmento da sociedade, como o uso de sumários e a tradução de palavras quando eram origem estrangeira.
 
Tal presença de um público homogêneo, uma característica da Inglaterra Elisabetana, também influenciaria nas temáticas a serem abordadas nos textos shakespereanos. Elementos relacionados a antigas tradições folclóricas e a opção pela predominância de heróis e até por cenas de movimento e ação são citados por estudiosos da obra do bardo inglês como resultado de preferências temáticas capazes de seduzir um público de características mais afastadas de um perfil erudito. Em outras palavras, Shakespeare fazia um teatro popular, capaz de agradar a diversos segmentos sociais, incluindo aqueles ligados à nobreza inglesa, como se pode constatar pelo patrocínio que muitas de suas montagens receberiam por parte da própria família real, que não raro comparecia aos espetáculos.
 
Essa peculiaridade da cultura teatral na Inglaterra, destoando da realidade de países como a Itália e a França, onde a dramaturgia cada vez mais se configurava como arte “superior”, seria o cenário ideal para o desenvolvimento da singularidade do teatro de Shakespeare e também seria o motivo pelo qual sua obra seria redescoberta no século XIX, quando começaria a ganhar o reconhecimento de que desfruta até hoje. Os românticos não só se identificariam com sua dramaturgia como também o colocariam como uma das maiores influências de sua arte. Arredios com a hegemonia das concepções culturais francesas e sua insistência numa visão da arte como trabalho da razão, muitos produtores de cultura daquele momento veriam na obra do bardo as condições ideais de uma nova forma de produzir cultura.
 
As obras shakeaspereanas permitiam penetrar numa nova noção do humano, em geral ausente nas obras de arte submetidas aos cânones do classicismo. Daí surgiria o conceito romântico de “gênio original”, que valoriza a espontaneidade da criação, a liberdade de conceber e o mundo íntimo como espaço primordial do fazer artístico, onde reinam a inspiração, o sentimento e a espiritualidade. A popularidade presente nos textos de Shakespeare também cairia sob medida nos anseios de uma ordem social marcada pela ascensão da burguesia, onde o povo e suas criações originais começam a ser erguidos à condição de padrão cultural eleito em detrimento de uma cultura aristocrática.
 
Os alemães estariam entre os que mais se seduziriam por elementos presentes na arte de Shakespeare, e o movimento conhecido como Sturm um Drang (tempestade e ímpeto) aparece como um bom exemplo. Entediados com uma noção da arte que acreditavam tolher a criatividade humana, então jovens escritores como Goethe e Herder veriam nas peças de Shakespeare uma bela reunião de componentes que permitiam praticar uma arte promotora da espontaneidade do ser. O encontro com a obra do bardo premiaria a busca por novas referências textuais que os tinha feito enveredar por obras tão díspares como a poesia de Homero ou a Bíblia na versão luterana. Esse processo iniciado com os alemães, que abriria caminho para um novo universo de questões, como a valorização da cultura popular e a celebração da natureza e seus mistérios, não demoraria a seduzir os artistas e filósofos em outros importantes centros de produção de cultura na Europa.
 
Autores como Lord Byron e Victor Hugo, bem como pensadores como Diderot e Schiller, são frutos da renovação do conceito de criação sugeridos pela vitalidade dos textos shakespearianos. Mais do que afetar a arte e o pensamento, o universo posto em movimento pelos textos do bardo inglês haveria também de imprimir na mentalidade ocidental uma nova noção das próprias dimensões humanas. A concepção sobre o talento, ainda que mantendo a conexão com a ideia de “dom”, deixa de estar relacionada a elementos como o apuramento da técnica ou a perfeição e equilíbrio de uma obra, e passa a ser compreendida a partir de critérios como a originalidade e o poder de instituir novos padrões de criação e de beleza.
 
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