A história de São João como cultura universal


João, o batizador de Jesus, segundo a tradição cristã, é uma das figuras mais presentes e referenciais da cristandade. Mais do que o santo católico e, para os brasileiros, um dos santos juninos, trata-se de um personagem relacionado a uma série de outras tradições e realidades culturais. Criado sob a influência da intensa religiosidade praticada pelos pais, João não demorou a se inclinar para as questões de natureza mística, sendo levado ao nazirato, costume típico de algumas famílias religiosas judaicas, que colocavam seus filhos para fazer votos que os predispunham a práticas ascéticas.

Os nazireus eram caracterizados pela farta barba (quando havia, já que alguns eram muito jovens), pelos cabelos cumpridos e ainda por hábitos como a abstenção de bebidas alcoólicas e a proibição de tocar em cadáveres. A partir de toda essa disciplina eram introduzidos em conceitos e problemáticas religiosas de nível mais elevado, aproximando-se assim das atividades sacerdotais e rabínicas. Esses ascetas vinham de linhas filosóficas diversas, de modo que João, não demorando a entrosar-se com outros religiosos, pôde desfrutar de um considerável acervo de ideias, o que provavelmente influiu em sua busca pessoal.

Alguns historiadores de João trabalham com a hipótese de que ele teria atuado como um mestre, já que há registros de que tinha discípulos que o seguiam costumeiramente, recebendo e vivenciando ensinamentos. Certas tradições afirmam inclusive que André e João, o Evangelista, dois dos discípulos diretos do Cristo, eram antes seguidores de João.

Já pertencente à esfera dos santos católicos João Batista é cultuado desde os primeiros anos da cristandade, afinal, ao longo dos Evangelhos canônicos, ele aparece sempre muito bem referenciado, a começar pelo próprio Cristo, que não lhe poupa boas indicações, como a frase muito conhecida no discurso cristão “Entre os nascidos de mulher, não há maior profeta que João Batista” (Lucas, 7:28). Como o profeta desde o início afirmou a titularidade do Messias, enfatizando sempre que diante dele era alguém sem importância, os seus admiradores naturalmente passaram a ser seguidores de Jesus, de modo que os chamados cristãos primitivos levaram, desde cedo, a imagem de João Batista com uma grande referência.

Assim, desde as mais primitivas manifestações de cultura cristã a figura de João se faz presente. Evidências sugerem que, ainda em período anterior à ocupação árabe na Europa (em torno de VII d. C.), o profeta já era cultuado. Aliás, aí a devoção a São João teria se firmado a partir da uma influência no ideário cristão de certas celebrações religiosas muito antigas, com registro ainda em tempos pré-cristãos, que reverenciavam os solstícios, um elemento muito cultuado em expressões místicas da Antiguidade.

A Idade Média, período em que a temática religiosa ocupa um grande espaço na vida europeia, é extremamente rica em referências a São João. Pródiga também nas expansões do imaginário, ganha destaque a singular figura do rei Preste João, nos séculos XII e XIII, cuja existência flutua entre o mito, as lendas medievais e a religiosidade cristã. Teria sido um monarca que governava um reino localizado no continente africano, convertido ao cristianismo, sendo portanto opositor do islamismo que naquele período dominava a região.

O fato de manter-se cristão num momento de grande poder militar dos muçulmanos atestava a força desse reino, o que teria chamado a atenção de outros monarcas cristãos que, inconformados com aquela situação, articulavam com o Papa Eugenio III a possibilidade de que fosse organizada uma nova cruzada para que a tradição cristã não ficasse submetida ao inimigo islâmico. As notícias desse reino e de seu monarca chegam à Europa, e junto com elas uma suposta carta em que o rei se oferecia para colocar o seu poder a favor das empreitadas cruzadas.

Dentro desse enredo figura a lenda ou mito da árvore da vida que, segundo se acreditava, ficava a poucos metros do paraíso, em local de difícil acesso porque era vigiada por um ser quimérico representado por uma enorme serpente de duas asas e nove cabeças. São João entra nessa história porque o dia a ele consagrado era o único período em que a criatura descuidava de seu objeto de guarda, quando então era possível recolher da árvore um bálsamo, que garantia uma espécie de passaporte para o paraíso. Mesmo tratando-se de uma lenda, a história, no entender de estudiosos da cultura medieval, revela uma profunda veneração pela figura de São João, pois ele é apontado como um símbolo de força e combatividade, contra o qual nem mesmo a vigorosa e temida serpente poderia ir.

Ao avançar sobre povos de cultura pagã, o cristianismo encontrou cultos antigos, bem sedimentados em celebrações de grande cunho popular. Uma dessas festividades ocorria durante o solstício de verão na Europa, em torno do dia 23 de junho (o dia em que se honra São João é o 24). O significado místico da celebração seria que, durante o solstício, o sol se posiciona na maior distância angular em relação ao globo terrestre, isto é, sua declinação é a maior possível, e isso era objeto de importante culto para os antigos. Na festividade as pessoas acendiam grandes fogueiras, em torno das quais eram entoados cânticos e os participantes a rodeavam enquanto cantavam. Havia também um costume de saltar sobre as fogueiras que, segundo diziam, conferia a quem o praticasse maior proteção contra doenças e outros males. A semelhança não é uma mera coincidência com a festa brasileira de São João.

O Islamismo também reserva a João uma posição importante. Primeiramente porque, sendo uma das chamadas três grandes religiões monoteístas (a mais recente delas), as tradições hebraica e cristã formam a sua base histórica. Dessa maneira, João, sendo considerado o último dos grandes profetas judeus, figura no rol dos maiores enviados por Alá. Inclusive ainda hoje, na mesquita de Omeya, na Síria, uma das mais importantes do mundo muçulmano, persiste uma interessante relação com João Batista.

Isso porque o templo, que tem cerca de três milênios, já pertenceu e serviu a inúmeras fases históricas e religiosas. Foi construído pelos arameus, serviu de templo pagão dedicado a Júpiter, catedral bizantina em honra a São João, passando então para o domínio muçulmano sendo transformado em mesquita. Do período em que pertenceu à Igreja Católica resta ainda justamente o túmulo de São João onde, segundo afirmam certas tradições, estaria sepultada a cabeça do santo, sua principal relíquia.

Outra expressão religiosa onde São João aparece com grande destaque é na pouco conhecida e misteriosa seita chamada Mandeísmo. Muitas e variadas são as hipóteses que os historiadores levantaram para explicar o passado dessa minoria, que vive atualmente espalhada em pequenas comunidades, em várias partes do Oriente Médio, principalmente no Iraque, onde se encontram em razoável número. Dentre as teorias há a ideia de que já existiam em período pré-cristão, sendo ligados a grupos judaicos ou siríacos. Há historiadores que afirmam a origem do culto justamente entre os discípulos diretos de João, que teriam tomando o rumo diferente da maior parte dos seus companheiros e se recusado a seguir Jesus.

Cultuado como um dos santos mais populares do Brasil traz consigo um vasto acervo de cultura, religiosidade, lenda e história, que de algum modo fica impresso na alma do povo e se atualiza a cada celebração, mesmo que a riqueza do personagem escape à percepção da maior parte das pessoas.

Leia também: “Das cruzadas aos pensadores, como a Igreja Católica ingressou na Modernidade”.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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