Mangueira teu cenário é uma beleza


Jamelão, o intérprete histórico dos sambas da Mangueira, cercado por outros grandes da música brasileira: Margareth Menezes, Beth Carvalho, Emílio Santiago e Alcione.

E eis que a mais popular escola de samba do Brasil chega aos seus 90 anos! Mas com corpinho de vinte, se pode afirmar, diante de tudo o que continua oferecendo ao carnaval e à cultura popular como um todo: vitalidade, alegria e beleza. Mas além do que a Estação Primeira de Mangueira representa para o país e o Rio de Janeiro em particular, vale a pena conhecer a força de uma história, recheada de tradições, gente talentosa e até – pra surpresa de alguns – de ações de grande valor social e cidadão.

O nascimento da comunidade da Mangueira tem a ver com o próprio processo de favelização da cidade, quando no início do século XX as regiões altas da então capital federal começam a ser habitadas depois da grande remodelação urbanística que deu ao centro do Rio ares das mais modernas metrópoles do mundo na época. Muitos cortiços e pequenas vilas que ficavam em áreas que sofreram intervenção foram desativados, e os moradores forçados a se instalar em locais até então ermos e desertos.

No caso da Mangueira, o até então chamado Morro do Telégrafo (que ainda é o nome de uma comunidade do complexo da Mangueira) passou a ser habitado depois que casas que ficavam em torno do 9º Regimento de Cavalaria do Exército foram demolidas. Na segunda metade do século XIX é inaugurado o serviço ferroviário na cidade e num ponto em que não tinha nenhuma parada do trem havia um terreno repleto de mangueiras próximo a uma conhecida fábrica de chapéus. As pessoas que queriam ir lá adquirir essa peça do vestuário tão utilizada naqueles tempos tinham que pedir ao condutor para dar uma paradinha “ali nas mangueiras”. Logo depois naturalmente esse seria o nome dado à estação que foi instalada, a primeira depois da Central em direção ao subúrbio (onde aconteciam as grandes rodas de samba de então).

Nelson Cavaquinho, Beth Carvalho, Cartola e D. Ivone Lara, a pura tradição do samba carioca.

A escola de samba nasceria algumas décadas depois (1928) em torno da intensa atividade carnavalesca que acontecia no morro, como aliás em toda a cidade. Habitada predominantemente por afrodescendentes, a comunidade não podia participar dos eventos de carnaval que aconteciam no centro da cidade, organizados para as classes mais abastadas e brancas. A saída foi organizar blocos e desfiles locais, que seguiam o padrão de festas ordeiras e familiares que predominava na capital. Isso significava que não eram bem-vindas bebedeiras, desordens e brigas durante os dias de folia.

Um grupo de jovens já dedicados ao samba, mas de vida boêmia (ou seja, frequentemente metidos em episódios de desordem pública), era assim proibido de brincar carnaval na Mangueira. A saída encontrada pelos rapazes foi criar um bloco só de homens a que deram o nome de Arengueiros (sinônimo para arruaceiros). Para não fugir ao nome, os integrantes se metiam constantemente em polêmicas e problemas com a polícia, o que chegou a valer cinco anos de reclusão para alguns integrantes.

Quem poderia imaginar que desse grupo de carnavalescos nem sempre bem-comportados nasceria a mais famosa escola de samba do Brasil, que pouco depois já participaria dos glamorosos desfiles da Praça Onze junto a outras coirmãs tradicionais do carnaval. E mais que isso, quem seria capaz de supor que dentre esses baderneiros fundadores estaria gente que viraria lenda no carnaval carioca, como Carlos Cachaça e um certo Agenor de Oliveira, cujas composições entrariam para a história da música brasileira, através de um apelido que evocava toda a sua nobreza: Cartola.

Ao grande mestre se deve a escolha do fascinante verde e rosa que identifica a escola logo à primeira vista. Cartola teria se inspirado no Rancho do Arrepiado, do bairro de Laranjeiras, uma lembrança dos carnavais de sua infância. Há quem diga que a escolha levou em conta também as cores do seu time de coração, o tricolor carioca. Seja como for, tão importantes como esses pormenores da história, são as contribuições desse fundador da Mangueira para a música e as letras brasileiras, a partir de obras-primas como “As rosas não falam”, “O mundo é um moinho” e “Senhora liberdade”, gravadas por grandes intérpretes da canção nacional e que passaram a integrar definitivamente a memória e a alma do Brasil.

Importante mencionar também a ligação intrínseca entre a Mangueira e a força da cultura africana que se solidificou no Rio de Janeiro no limiar entre os séculos XIX e XX. Discriminados entre as classes média e alta tradicionais da capital federal, os cultos de matriz afro foram largamente abrigados nos morros da cidade. Uma infinidade de terreiros e casas de prática de candomblé e umbanda servia a população, se misturando a outros cultos e influenciando o mundo do samba com seus batuques e pontos de louvação às entidades do panteão iorubá. Essa ligação histórica faria das atividades da escola um verdadeiro reservatório da herança africana fundamental na formação cultural do país.

Toda essa história de inclusão, arte, religião e cultura popular que se articula ao longo dos becos e vielas da Mangueira seria sintetizada principalmente através dos imortais enredos que encantaram o Brasil e tocaram no íntimo do povo. Como esquecer desfiles memoráveis como aquele que louva a riqueza da Amazônia (“Avatar, e a selva transformou-se em ouro”) que começa com o famoso refrão, até hoje na boca do povo: “Tem mulata, pessoal, na colheita do cacau…”? Ou o “Brasil cabra da peste da nação Nordeste”, campeão em 2002? E que tal o verso de alto teor social do enredo cantado no ano do centenário da Abolição: “Livre do açoite na senzala, preso na miséria da favela”?

Sem falar naqueles que exaltam grandes nomes da vida brasileira, como o “Yes, nós temos Braguinha”, campeão no ano de inauguração do Sambódromo; “Atrás da verde e rosa só não vai quem já morreu”, que homenageou os artistas do Tropicalismo; e o último título, de 2016, “A menina dos olhos de Oyá”, que elevou aos olhos do mundo a grande artista brasileira que é Maria Betânia.

Também não se pode deixar de lado os sambas criados pra homenagear a própria Mangueira, os inesquecíveis “Alvorada”, de Cartola (Alvorada lá no morro / que beleza / Ninguém chora / Não há tristeza / Ninguém sofre dissabor), e Folhas secas, de Nelson Cavaquinho (Quando eu piso em folhas secas / caídas de uma mangueira / Penso na minha escola / E nos poetas da minha estação primeira).

Pra finalizar essa homenagem aos 90 anos dessa verdadeira relíquia da cultura nacional, que é a Mangueira, vale mencionar os brilhantes trabalhos sociais que funcionam na comunidade. Além da já tradicional Vila Olímpica e do Centro Cultural Cartola, já inseridos na cena cultural e social da cidade, outras iniciativas no campo da educação e da cultura são responsáveis por índices humanos excepcionais e animadores, como o zero de analfabetismo entre as crianças da comunidade e a praticamente inexistência da mortalidade infantil.

Maria Bethânia, a grande homenageada no último campeonato da escola, em 2016.

A Mangueira satisfaz, dessa forma, não apenas o ideal de cultura e beleza próprio do universo do carnaval, como também a função social de uma escola de samba: a de ser uma “escola de vida”, como os mangueirenses adoram definir a sua paixão em verde e rosa. A Mangueira não apenas chegou como plantou raízes no coração do Brasil. Parabéns, Mangueira!

Obs.: Essa foi a singela homenagem de um torcedor da Imperatriz Leopoldinense àquela que é, no fundo, a escola de todos os brasileiros.

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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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