O amor na Idade Média – Sobre o que hoje entendemos como amor


É ao longo do século XII que o casamento deixa de ser uma instituição meramente civil, utilizada principalmente pelas classes altas para acomodar questões financeiras e familiares, para tornar-se um campo de ação efetiva da Igreja, que pouco a pouco se insinua não só no ritual conjugal, mas também determina a forma com que os casados deveriam agir no seio da união esponsalícia.

O motivo principal para essa gradual inserção da igreja no casamento foi a tentativa de disciplinar a prática sexual, refreando o que entendia como a “pulsão da carne”. Naquele momento da cristandade está em alta uma visão ascética. As pessoas deveriam viver unicamente voltadas para a atitude contemplativa que as conduziria à salvação. Tudo o que não concorre para a concretização desse objetivo deve ser combatido e relacionado ao mal. O sexo, por sua vez, encabeça a lista das atividades humanas capazes de desviar dessa que seria a meta primordial da vida, a busca pelo encontro com Deus.

E dentro desse campo a mulher vai ser concebida como a grande ameaça à realização do mundo idealizado pelos monges. É dela que viria a perdição que desvia os homens de suas obrigações com o criador. Assim, a Igreja inicia um acentuado processo de aproximação com o cotidiano familiar, com a finalidade de emplacar uma série de regras dirigidas para disciplinar a sexualidade, uma vez que a necessidade de procriar tornava inviável a completa eliminação do conúbio carnal.

Um primeiro passo para alcançar esse controle da prática sexual no interior do casamento foi a formulação de um discurso teológico sólido. Tal raciocínio seria buscado na obra de São Paulo, principalmente na ideia de que a relação conjugal entre os cristãos deveria ser compreendida a partir da metáfora da relação de Cristo com a sua noiva, a igreja. Assim, a atitude entre casais deveria pautar-se pela busca incessante de uma pureza que se assemelhasse à fraternidade cristã, e onde, naturalmente, a prática sexual aparecia como um fator de pecado a conspurcar uma instituição fadada a ser um cenário de integração com Deus.

Isso implicava também estabelecer papéis definidos a cada um, o que representou importantes mudanças em relação à forma com que o casamento era encarado até aquele momento. Uma dessas determinações passava pelo direito que doravante a igreja concedia à mulher de manter-se casta, isto é, contrariamente ao costume, ela podia manifestar o desejo de conservar a sua castidade, estando assim dispensada da obrigação de ceder à satisfação sexual do marido.

Naturalmente isso não seria estabelecido assim tão rápido, o que provavelmente ocasionaria um aumento da prática sexual fora do casamento, e consequentemente a perda do controle sobre essa atividade, exatamente o que a igreja buscava evitar. Assim, os homens também seriam estimulados a compreender o casamento sob o olhar da pureza cristã e da rejeição ao mal, de modo que não era rara a ocorrência de maridos que abriam mão de seu “direito” de posse sobre o corpo da esposa, muitas vezes eles próprios adotando a abstinência sexual, formando situações de casais totalmente celibatários.

Mas casos como esses não seriam, de maneira nenhuma, os predominantes. Em boa parte das uniões esses propósitos ascéticos perseguidos pelos monges redundariam em situações conflitantes, como a flagrante desvantagem da mulher, quando o esposo – que por um lado se via constrangido pela própria igreja a não se relacionar com outras mulheres que não a esposa – não aceitava a opção da parceira pela abstinência e buscava pressioná-la a ceder, tocando fundo nos escrúpulos de pureza que ela resolvera adotar para si, justamente por influência do sacerdote como conselheiro ou confessor. A saída para essa situação dramática era o discurso da fragmentação da mulher.

Como seríamos formados de corpo e alma, afirmavam os padres, a mulher estaria em sintonia com as pretensões divinas se abandonasse o primeiro, entregando-o ao desfrute do esposo, e cuidasse principalmente da segunda, se dedicando a toda sorte de preces, penitências e sacramentos para garantir a sua salvação. Mas essa redução do casamento a uma empresa de finalidades salvíficas também deixaria um legado importante. É que, como consequência dessa tensão entre sexualidade e salvação, as relações conjugais nessa altura da Idade Média resultariam no desenvolvimento do chamado amor cortês. Uma cultura que buscava de alguma forma assumir o caráter fraterno proposto pela igreja no interior do casamento.

Ao considerar a mulher uma expressão da santidade e do sublime, os homens entravam numa espécie de jogo de sedução, no qual a meta era garantir a respeitabilidade da mulher como criatura beatificada, em que a alma predomina sobre o espírito. Mesmo sendo algo que se concretiza mais no campo de um gênero literário e apesar de ser uma relação que ocorre fora do âmbito do casamento, o amor cortês em parte se mantém fiel a uma ideia do amor como requisito de aproximação com o sagrado.

A dama sublime e altiva, alvo da cortesia, representa um certo tom moralizador e educativo, na medida em que por ela só se pode expressar um amor como uma ideia superior, como uma experiência do sublime, pois a conquista do amor da dama é sempre algo impossível. Assim, a cortesia é em parte uma louvação do amor ideal, um sentimento que em nada se identifica com um conceito de amor como prazer carnal ou satisfação da sexualidade. Portanto, é de alguma forma um amor semelhante ao proposto pela igreja, ainda que estivesse preocupada com o mundo conjugal. Já o amor cortês é uma prática entre solteiros, entre jovens celibatários, que dessa forma expressam sua ânsia pelo amor.

O conceito de amor conjugal cristão “inventado” pela Igreja extrapolou a intimidade do lar medieval e ganhou sua expressão na literatura. Muitos séculos depois o romantismo retomaria certas noções a respeito do amor tomando como base a literatura cortesã. As senhoras feudais reaparecem nas figuras das dignas damas da literatura do século XIX, e os amores de satisfação impossível se firmam como temas recorrentes dos escritores românticos. Além de influenciar a forma como ainda hoje vemos o casamento, essas ideias ainda estão presentes na dramaturgia de massa, nas novelas e filmes. Muitos traços das visões concebidas nas meditações filosóficas e religiosas nos mosteiros chegaram até nossos dias e ainda nos dão a medida do que entendemos como amor.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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