Histórias de São Francisco: o homem e o rio

Histórias de São Francisco

Uma jovem de aproximadamente 18 anos, de família de bons recursos, bem criada, que recebeu escolaridade e educação, e que enfim foi alvo de todo o encaminhamento familiar para vivenciar o melhor do seu tempo resolve fugir de casa, abandonando todas as facilidades e regalias de que poderia dispor no seio da parentela. E tudo isso pra quê? Pra seguir um grupo de cultores da liberdade, amantes da natureza, criaturas satisfeitas com as coisas simples e singelas da vida, descuidadas da sua aparência exterior e praticantes da filosofia paz e amor. Poderíamos certamente estar fazendo referência aos anos 1960 do século XX, quando o movimento hippie, portador de algumas dessas características, mobilizava jovens, seduzia-os à adoção de um novo estilo de vida e principalmente lhes apresentava uma nova opção de participação naquele mundo marcado pela Guerra Fria e que explodia em conflitos e revoluções por todos os cantos do planeta.
 
Mas estamos na verdade no século XIII, na região da Umbria, e o movimento em questão é aquele fundado por Francisco de Assis, baseado na caridade e no amor ao semelhante. A jovem mencionada é Cla­ra, que se seduz por aqueles ideais e pela palavra cativante do Pai Francisco. A comparação entre os dois movimentos não é exagerada. Muitos fazem essa ligação entre a simplicidade franciscana e o despojamento dos jovens dos anos 1960. É claro que o movimento surgido nos EUA não por acaso na cidade de San Francisco – apresenta outras características que de modo algum podem ser compartilhadas com o ideário franciscano, mas parece inegável – e muitos estudiosos já afirmaram essa identificação – que ambos, cada um a seu modo, propõem reformulações im­portantes na maneira de as pessoas viverem e nos valores que adotam para suas vidas. Assim como no movi­mento do século XX, muitos naquela sociedade cristã europeia, de perfil mais conservador, viam os franciscanos como espécies de vagabundos, pois não detinham quaisquer recursos, não acumulavam bens e viviam a esmolar para satisfazer as necessidades mais básicas da existência. Além disso, como praticavam uma religião mais distante das igrejas e das celebrações oficiais, não eram reconhecidos por muitos como religiosos, sendo mais classificados como andarilhos ou aventureiros.
 
Mas foi aquilo que não se vê à primeira vista o que seduziu a jovem Clara e a fez tomar tão radical atitude para aqueles tempos. Estamos falando do sentimento genuíno de amor ao semelhante, da capacidade de dedicar-se inteiramente às coisas que elevam o espírito e assim tratar das criaturas mais carentes, de viver para o amor e para a práti­ca do bem incondicional. A vida de São Francisco parece se enquadrar perfeitamente nesse ensinamento, pois que ele praticou o amor ao semelhante de uma maneira integral, fazendo da sua exis­tência a busca pela felicidade do seu próximo, e também um homem de letras, deixando belos escritos que denotam sua condição de estudioso e filósofo erudito da vida cristã. Um dos grandes pensadores da cristandade, precursor do Renascimento, segundo alguns.
 
A grande popularidade que mantinha na Europa fez com que viesse, através do colonizador, para nosso país, onde certamente foi abrigado pela esmagadora maioria dos crentes brasileiros. Numa nação com tantos espaços naturais, um povo sofrido e uma familiaridade muito grande com os fenômenos migratórios, onde se busca aproveitar nossa continental extensão para procurar melhores condições de vida em locais diferentes daquele em que se nasceu, a devoção ao santo de Assis naturalmente teve seu lugar garantido. Muitas cidades brasileiras o têm como padroeiro e principalmente a cultura rural do Brasil desenvolveu o persistente hábito de evocá-lo para o êxito de suas lavouras e a saúde de seus animais de criação. Muitas can­tigas populares e manifestações folclóricas expressam a presença do Poverello no imaginário dos brasileiros. No imaginário e também na criação artística. Haja vista a Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, em Minas Gerais, considerada a obra-prima de Antonio Francisco Lisboa, o mestre Aleijadinho, um dos maiores artistas de todos os tempos. Da genialidade do barroco mineiro para a modernidade de outro gênio, Oscar Niemeyer, encontra-se uma outra grande expressão artística do santo no Brasil, a igreja de São Francisco de As­sis em Belo Horizonte. Seguindo o estilo sempre revolucionário de um dos maiores arquitetos do mundo, o templo destoa muito dos padrões habitualmente usados em edificações religiosas, o que faz da igreja algo admirado por gente de todo o mundo que visita o país, tendo sido recentemente transformada em patrimônio cultural da humanidade.
 
Há também muitos xarás de São Francisco espalhados pelo Brasil. Quase todos transformados em “chicos”, apelido quase endêmico no país, quase todos também pobres e humildes como o santo da Umbria, o que significa que receberam esse nome para homenagear o santo de devoção na proteção do qual se deixam os filhos queridos. Mas talvez nenhuma manifestação da fé brasileira em São Francisco seja tão expressiva quanto o rio que recebe o seu nome e que, conforme a familiaridade tão característica dos brasileiros, é carinhosamente tratado de “Velho Chico”. Os nativos da nossa terra o chamavam de Opará, que em alguma língua nativa significa rio-mar, tal a sua extensão. O nome homenageando o santo se deve ao fato de ter sido descoberto por navegadores das frotas de Américo Vespucio, no início do século XVI, justamente no dia em que é venerado, 4 de outubro.
 
É chamado o “rio da unidade nacional”, pois tem sua nascente na região Sudeste, mais precisamente no estado de Minas Gerais – onde há uma imagem do santo –, e percorre cinco estados brasileiros, chegando até a região Nordeste, desaguando no Oceano Atlântico, numa extensão total de quase três mil quilômetros, tendo ainda a peculiaridade de ser o único rio brasileiro a correr do sul para o norte em função de certas características topográficas. Ao longo do Velho Chico muitos outros rios menores despontam, abastecendo inúmeras cidades e possibilitando a vida de milhões de brasileiros. Foi seguindo as suas águas que desbravadores do Brasil romperam o limite entre o sul e o norte, juntando civilizações diferentes, unindo raças e histórias e abrindo caminho para a diversidade nacional.
 
Subsistem ao longo do Velho Chico inúmeras práticas religiosas, expressas em rituais e festivida­des, que inclusive têm servido para preservar importantes elementos de raiz brasileira, principalmente aqueles que se referem à cultura e à religiosidade indígena e africana. Como as comunidades que se situam ao longo do rio por muito tempo viveram isoladas, distantes do modo de vida que se desenvolveu em outras partes do país, nelas se moldaram formas culturais e religiosas únicas, não encontradas em nenhum outro ponto do Brasil e talvez ainda não suficientemente exploradas pelos estudiosos de cultura brasileira. É o caso da conhecida Festa do Divino Espírito Santo, uma das mais claras contribuições da cultura ibérica para a nossa formação. Nessa celebração, como em todas as outras que sobrevivem em torno do rio, se pode ver o princípio humanista que Francisco de Assis pregou, expresso na solidariedade e no espaço para as diferenças que marcam a cultura e a religiosidade dos habitantes das localidades banhadas pelo Velho Chico, o rio da integração, da fé e da humildade. São Francisco é em suma uma das grandes figuras do catolicismo, tanto o oficial como o popular, cultuado em religiões de matriz africana e no espiritismo, inspiração dos amantes da natureza, padroeiro dos ecologistas, protetor dos animais. O Brasil todo cabe na aura de liberdade e alegria de um certo Chico, da Europa do século XIII ao planeta em perigo do terceiro milênio.

 

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