Quem eram os capitães do mato?


Eles estão entre os personagens mais contraditórios da cultura brasileira e possivelmente são os que melhor sintetizam a ausência de referência cultural que caracterizou muitos brasileiros ao longo de nossa formação étnica. Tidos como traidores da raça por alguns ou inescrupuloso e repulsivo por outros, o fato é que se trata de um tipo que para ser melhor compreendido requer uma análise não apenas de sua personalidade, mas principalmente do contexto cultural que permitiu a sua eclosão como um fenômeno tipicamente brasileiro.

O choque mais comum causado pela presença desse personagem, ao mesmo tempo desprezado e odiado pelas duas partes entre as quais se encontra, naturalmente está no fato de se tratar de um ex-escravo, que experimentou na pele as agruras da condição cativa, e ainda assim se dedicar a perseguir aqueles que teoricamente são os que lhe deviam estar mais próximos.

Tinham a virtude, se assim se pode chamar, de conhecer as habituais formas de fuga de seus ex-companheiros de cativeiro como principal moeda de troca com seus empregadores, o que na maior parte das vezes se efetivava no bom aproveitamento que em geral apresentavam ao se embrenhar mata a dentro para recuperar “quilombolas”, como então se chamavam os escravos que ousavam escapar de sua dura rotina, se juntando a outros na mesma situação.

Mas não se pode apontar o caráter duvidoso do negro, pobre e ex-escravo que é o capitão do mato sem incluir a própria elite colonial que se utilizou da relativa comodidade que os serviços por ele prestados propiciava. Afinal, o título militar que era conferido a esses “servidores” não era uma mera nomenclatura, uma vez que as atividades de caráter “policial” que devia estar livre para desenvolver precisavam estar abrigadas numa autoridade legal, daí a patente de capitão. Uma situação que forçava os homens mais ricos e abastados da colônia a de alguma forma conviver com seus capitães, ainda que lhes devotassem um inegável desprezo, como se pode ver em muitos documentos históricos recolhidos durante a escravidão no Brasil.

Essa situação faria com que os capitães adquirissem relativa importância na manutenção da ordem, o que faria deles figuras constantes não apenas nas fazendas, mas também nas cidades mais desenvolvidas, tornando-o, de uma forma ou de outra, um membro da comunidade, figurando entre os homens de peso e prestígio. Mas sempre visto e julgado negativamente, como se pode presenciar através de muitas manifestações, principalmente nas proximidades do século XIX, quando as ideias que mais tarde culminariam na abolição começam a se tornar relevantes sobretudo para as elites intelectuais e culturais.

É o caso, por exemplo, do intelectual abolicionista Joaquim Nabuco, que em discurso na sessão legislativa em 1887 perguntava: “Há profissão mais alta e mais honrosa do que a profissão de soldado? Há profissão mais baixa e degradante do que a de capitão do mato?”, sugerindo uma clara distinção entre militares que serviam a pátria e aqueles que utilizariam suas patentes para o infame serviço da opressão.

Outro exemplo é o do pintor alemão Rugendas, que enquanto visitava o Brasil como membro da expedição Langsdorff, entre 1822 e 1825, deixaria registrado seu estarrecimento com a visão de um ex-escravo capturando ferozmente um fugitivo, em tela que ficaria conhecida como uma das mais marcantes imagens do Brasil de então. E ainda poderíamos citar a verve satírica do dramaturgo Martins Penna, que dedica um de seus textos a abordar esse personagem que tanto expressa a realidade de um país em que a escravidão se tornaria uma mancha difícil de apagar.

Mas essa indignação por parte de nossos homens mais letrados nem de longe constituía um sentimento geral em toda a sociedade brasileira. Tanto é que ainda seria tolerada uma espécie de versão polida do capitão do mato, que eram figuras relacionadas a serviços como a polícia e a imprensa, que aproveitavam de informações obtidas nesses locais para assumirem eles próprios a tarefa de encontrar escravos fugidos, que restituíam a seus proprietários mediante pagamento, obviamente. Ao contrário dos capitães do mato tradicionais, esses quase sempre não eram afrodescendentes e não usavam métodos rudes ou violentos, o que fazia com que normalmente fossem vistos como prestadores de serviços e não como perseguidores da liberdade de outros seres humanos.

A imprensa, aliás, muitas vezes não fugia à tarefa historicamente desempenhada no Brasil de poupar os poderosos em desvios de toda sorte. Em troca das vultosas somas arrecadadas com anúncios ligados à escravidão – de escravos fugidos a outros oferecendo ou procurando “alugar” cativos –, não hesitaram em muitas vezes se calar diante do triste espetáculo da opressão.

A Gazeta de Notícias, por exemplo, um dos mais lidos da corte, chegaria ao ponto de publicar numa edição de 1880 vários anúncios de recompensas por escravos fugidos, isso no mesmo número em que abolicionistas militantes e prestigiados como José do Patrocínio e o próprio Joaquim Nabuco publicaram seus textos bradando contra aquele nefando instituto.

Se por um lado a ética do capitão do mato é realmente indefensável, por outro se trata de um tipo que reflete bem o vale-tudo que na maior parte das vezes foi a vida num remoto Brasil. Ele não tinha problemas em atuar como um perseguidor daqueles que estavam na condição em que ele próprio esteve um dia, e também pouco se afetava pelo desprezo de que normalmente era alvo por parte daqueles que o utilizavam e se beneficiavam de seus serviços, desde que conseguisse o que, na realidade do Brasil colônia, não deixava de ser um lugar ao sol.

Os ecos do capitão do mato ainda estão de certa forma presentes em muitos de nós que deixam pra segundo plano a realidade de seu pertencimento a um grupo ou a uma causa e esquecem qualquer tipo de ética a não ser a de se dar bem, ainda que sobre o infortúnio de muitos. Qualquer semelhança com o Brasil de hoje não é mera coincidência!

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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.

*Crédito da foto que ilustra o texto: Felipe Monteiro/GShow.


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