Quem disse que só o português? – A influência indígena


Que a língua portuguesa é disparado o idioma predominante no Brasil, além de ser a oficial, ninguém tem dúvida. O que muita gente não sabe é que o falar emprestado pelos lusitanos de além-mar não reina tão soberano entre nós como se poderia imaginar. Isso porque, ao lado da língua portuguesa, figura na verdade uma infinidade de outros idiomas, algo em torno de 180, pertencentes às muitas etnias indígenas que compõem o caldeirão cultural do Brasil. Se há entre esses idiomas alguns falados por um número muito reduzido de pessoas, há outros com quantidade considerável de praticantes.

O domínio do português no Brasil na verdade não existe desde o início da ocupação lusitana a partir de 1530. Aliás, até 1756, quando o marquês de Pombal, homem forte do governo do rei D. Manoel, decretou a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa em todo o território, o país inteiro se comunicava apenas em língua-geral, uma espécie de esperanto organizado pelos jesuítas a partir de vários idiomas que eles encontraram ao longo da costa brasileira. Essa situação tornava as autoridades do reino totalmente dependentes dos missionários para se comunicar com os habitantes. Estudos linguísticos apontam que algo em torno de 10 mil palavras oriundas da língua-geral passaram a integrar o léxico do português “brasileiro”.

Um resquício desse primeiro idioma nacional sobrevive no nheengatu, a variante amazônica da língua-geral, que é o falar utilizado por mais ou menos 20 mil pessoas no norte do país. A língua é estudada pelo Departamento de Letras Modernas da USP, o que tem permitido que outras pessoas, mesmo distantes da região da grande floresta, aprendam uma língua que mantém conexões históricas com os primeiros habitantes do país, já que a universidade organizou uma gramática que permite o aprendizado do nheengatu (se você gostou da possibilidade de conhecer uma língua indígena pode baixar o método em: tupi.fflch.usp.br).

Outros idiomas de origem nativa apresentam número de falantes ainda bem maior do que no caso do nheengatu. O Censo do IBGE de 2010 revelou que cinco dessas línguas nativas possuem um número de falantes acima de 10 mil pessoas. A campeã delas é o tikuna, falado por cerca de 35 a 40 mil brasileiros, seguido de guarani kaiowá (26 mil), kaigang (22 mil), xavante (14 mil) e yanomami (12 mil). Como há pelo menos sete outras línguas que apresentam número de falantes superior a 5 mil, já se pode perceber que uma quantidade considerável de brasileiros aprende a conhecer o mundo a partir de um idioma materno que não é o português oficial.

Além dos idiomas citados acima, que estão em pleno desenvolvimento através do uso cotidiano, há outras iniciativas que podem aumentar o número de usuários de falares nativos. Há muitas décadas que linguistas e estudiosos das culturais ancestrais brasileiras têm se esmerado em registrar patrimônios linguísticos em vias de extinção, o que significa elaborar dicionários e gramáticas, desenvolver métodos de ensino e formar professores entre os próprios naturais desses povos que foram deixando de usar o idioma de seus ancestrais para adotar a língua portuguesa.

Como resultado disso, várias etnias indígenas têm recuperado parte da sua história através da língua e ensinando-a aos pequenos que se alfabetizam. Situação que pode até colaborar para um renascimento real desses idiomas, como demonstra por exemplo a experiência do hebraico, que depois de desaparecer na era Medieval foi recuperado e é hoje a língua oficial de Israel.

Uma outra interessante e original iniciativa foi a do munícipio de São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas, que aproveitando a ascendência indígena de mais de 90% da população resolveu decretar outras três línguas como oficiais (baniwa, tucano e nheengatu), além do português, um caso pioneiro no Brasil. Em locais públicos do município, como o posto de saúde e o aeroporto, há placas e avisos nos quatro idiomas, além de muitos funcionários públicos intérpretes para atender toda a diversidade presente nessa região nos extremos do país, nas fronteiras com Colômbia e Venezuela.

Mesmo com esses números de falantes de outras línguas que não o português, mais robustos do que a maioria das pessoas pensa, a situação dos idiomas nativos enquanto patrimônio cultural é preocupante em alguns pontos. Basta ver que o número atual, de menos de duzentas línguas nativas, é o que restou de um acervo de mais ou menos 1.200 falares que existiam por aqui quando da chegada dos europeus.

Atualmente, várias dessas línguas indígenas estão fadadas a desaparecer pela ausência de falantes, pois idiomas como o Xetá e o Makú são utilizados apenas por poucas pessoas, já idosas, que naturalmente não vão levar adiante esse tão precioso registro cultural de um povo. A menos que o trabalho de antropólogos, linguistas e pesquisadores que se ocupam dos vestígios materiais (e linguísticos) desses povos seja mais valorizado.

Mas há também itens animadores em favor da manutenção desses depósitos de riqueza que são as línguas nativas da América. De um lado o fato de que vários desses idiomas não são falados apenas no Brasil, sendo partilhados com indígenas e mestiços de países vizinhos do continente – como são os casos de etnias do tronco guarani e os Yanomamis –, o que aumenta não só o número de falantes como também as possibilidades de manutenção das línguas através das novas gerações.

Por outro lado, estima-se que há cerca de 70 povos indígenas que praticamente não tiveram contato com não índios, o que significa que de eventuais aproximações com essas etnias podem se revelar ainda muitos tesouros culturais da diversidade brasileira. E se considerarmos que a diversidade cultural é uma das maiores contribuições do continente americano para a humanidade, chegaremos à conclusão de que manter e conhecer o gigantesco acervo linguístico de nossos ancestrais é um compromisso com uma questão que diz respeito a toda a nossa espécie.

Leia também: “O que é e o que pode no mundo de hoje uma língua como a portuguesa?”


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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