Donatários, os primeiros capitães do Brasil


Créditos: JOSÉ HENRIQUE SILVA
Créditos: JOSÉ HENRIQUE SILVA

Os donatários entraram para a história como os primeiros grandes povoadores do Brasil, responsáveis por desenvolver o então totalmente bucólico território, numa das primeiras iniciativas do estado português de explorar seu achado no outro lado do Atlântico. Até as três décadas iniciais do século XVI, europeus na América portuguesa só os que mergulharam como aventureiros, como os lendários Caramuru, na Bahia, e João Ramalho, na atual São Paulo, além de outros menos famosos, mas que mereceriam também o reconhecimento histórico pelo pioneirismo de se lançar ao verdadeiro tiro no escuro que foi a tentativa de se estabelecer na inospitalidade do meio tropical.

Mesmo em tese prestigiados pela coroa, os primeiros donatários não teriam muita sorte na empreitada. Todos os primeiros capitães do Brasil sucumbiriam frente às inúmeras dificuldades encontradas na América, inclusive Duarte da Costa, donatário da capitania de Pernambuco – considerada a mais promissora pela qualidade das terras e pela localização geográfica, como o ponto do Brasil menos distante de Portugal –, que, mesmo sendo o mais bem-sucedido na exploração das riquezas, terminaria seus dias recluso em Portugal, desiludido com os rumos do povoamento das terras.

A primeira percepção dos donatários deve ter sido a de que ser agraciado pelo rei com as cartas de posse era um grande negócio. Primeiro pela extensão das terras. Todas as 14 capitanias em que se dividiu a possessão portuguesa eram muito maiores que o próprio território lusitano, isso numa época em que possuir terras era um dos mais importantes índices de riqueza.

Em segundo lugar, porque os gastos que seriam necessários para realizar o trabalho de explorar as capitanias eram realmente vultosos, o que devia significar que o retorno a esse empreendimento seria de fato compensador. O investimento desde o embarque para a América até a instalação e defesa na nova casa – tudo por conta do donatário – refletia um dos principais requisitos adotados para a escolha dos primeiros posseiros do Brasil: eram todos eles figuras abastadas, possuidores de grandes fortunas. Todos tinham também uma boa folha corrida de serviços prestados à coroa em outras conquistas ultramarinas.

Um outro fator talvez tenha levado os donatários a acreditar que estavam entrando num negócio vantajoso: os poderes quase sem limites que a coroa concedia aos capitães no exercício de sua soberania sobre seus domínios. Eles podiam arrecadar explorando desde os colonos que trabalhavam nas terras até o trânsito por rios presentes em suas posses. Podiam também negociar com os indígenas e lucrar com salinas e nascentes de água, além de muitas vantagens para exportar produtos para o reino.

Sem falar no direito de estabelecer o sistema cartorial e jurídico lucrando em cima da prestação desses serviços. Seus poderes permitiam dispor de todo o material humano, sendo possível inclusive recrutar à força colonos e nativos para a defesa do território, ação que se tornaria muito comum nas capitanias, constantemente ameaçadas por tribos indígenas hostis aos portugueses e pelos muitos ataques de piratas e corsários franceses. O grande poder regional de que historicamente as oligarquias sempre desfrutaram no país tem sua origem na quase onipotência dos donos de capitanias.

Mas bastariam os primeiros tempos de experiência nos trópicos para mostrar aos donatários que suas expectativas não seriam satisfeitas assim tão facilmente. E os primeiros obstáculos viriam de deliberações da própria coroa. O que seria possivelmente a mais cobiçada das riquezas da terra seria declarada como uma propriedade do reino. Os donatários tinham que repassar a ele tudo o que por ventura fosse encontrado em termos de metais preciosos, o que ocorria sob pesada fiscalização. Um quinto disso era diretamente destinado ao rei, enquanto ao donatário não cabia mais que a vigésima parte desse valor.

Uma outra deliberação oficial, logo nos primeiros anos após a chegada dos primeiros capitães do Brasil, trataria de dificultar ainda mais a já difícil tarefa de se instalar nos trópicos. Um decreto do rei D. João III estabelecia a colônia como território de “couto e homizio”, o que significava que os donatários eram obrigados a receber em suas terras tipos considerados transgressores da lei no reino. O que não significava necessariamente se tratar de malfeitores no sentido que entenderíamos hoje. Acusados de feitiçaria e indivíduos portadores de “desvios sexuais”, como o excesso de lubricidade, por exemplo, não eram bem quistos no reino.

Aqui eram automaticamente considerados livres, não podendo receber qualquer tipo de interpelação em virtude de suas condenações anteriores, mas por outro lado sendo muito úteis ao projeto povoador que ajudaria a preencher de gente uma terra muitas vezes maior que a própria metrópole.

Assim, o país ficaria repleto de indivíduos de índole duvidosa, segundo os costumes lusitanos. Muitos deles não raro se metiam em motins, rebeliões ou em episódios que ameaçavam a ordem estabelecida na capitania, demandando gastos com providências punitivas, como organizar uma estrutura de justiça e erguer presídios e locais de castigo e punição.

Muitos desses “desajustados” acabariam recebendo dos donatários poderes que lhes permitiam exercer função de polícia contra colonos ou nativos rebeldes e, claro, contra etnias que ameaçavam a paz na capitania. Nem precisa dizer que em torno de alguns desses tipos, às vezes verdadeiros psicopatas, surgiriam muitos focos da violência generalizada que atravessaria o Brasil dos primeiros séculos de povoamento português.

No final de menos de vinte anos da expedição das primeiras cartas de posse, o último dos 12 donatários agraciados pela coroa retornava à Europa deixando pra trás o que antes era a promessa de um futuro ainda mais afortunado. O negócio das capitanias não resistiria às dificuldades de viabilizar a exploração comercial regular das terras, somadas à vulnerabilidade constante da soberania frente a nativos ferozes e invasores estrangeiros e a imposições que a coroa fazia incidir sobre a atividade donatária.

Entre dramas como a ruína econômica de vários dos primeiros capitães e até tragédias pessoais como a do donatário do Espírito Santo, Vasco Coutinho, que termina seus dias totalmente tomado pelo vício do tabaco e de “bebidas espirituosas” de indígenas (e sem as terras), o Brasil seguiria em sua sina de produzir riquezas, mas de forma cada vez menos organizada, com o poder do mais forte estabelecendo uma infinidade de feitorias locais ao longo do vasto continente e cada vez mais se configurando como uma “terra de ninguém”.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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