Os filósofos da natureza (Os Pré Socráticos)


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O século VI a.C. foi o cenário de grandes transformações na história das atividades humanas, de que são importantes exemplos o surgimento do teatro e a ascensão de pensadores como Confúcio e Lao-tsé. Mas talvez a inovação de maior impacto para o futuro da espécie tenha sido o aparecimento da filosofia, revelando a insuficiência, em termos de explicação da realidade, das antigas formas de conhecimento calcados nas narrativas mitológicas herdadas dos ancestrais.

O surgimento dessa nova forma de conhecimento está profundamente relacionado às transformações sociais ocorridas nas cidades e colônias do Mediterrâneo. Dentre elas podemos apontar o incremento da navegação nas atividades comerciais, que expandiu o intercâmbio entre culturas até então distantes; as invasões territoriais de povos de origem jônia fundando cidades que se tornariam grandes entrepostos comerciais, como Mileto e Éfeso; e a ascensão da monetarização como método cada vez mais fortalecido de praticar o comércio.

Todo esse processo culminaria numa intensa e até então inédita produção intelectual nessas cidades mais desenvolvidas pelo avanço do quadro acima descrito. Nasce assim a filosofia a partir da produção de indivíduos interessados sobretudo em buscar explicações racionais para as grandes questões que tradicionalmente mobilizaram os diversos povos e culturas, como opção aos inúmeros sistemas mitológicos, que até então ocupavam esse papel. Esses pensadores, voltados sobretudo para compreender a base essencial das coisas (que os gregos chamariam de arché), ficariam conhecidos na história do pensamento como filósofos da natureza.

Uma das primeiras expressões desse novo caminho de produção intelectual ocorreu com a ascensão do que ficaria conhecido como Escola de Mileto, tendo na figura de Tales seu primeiro grande representante. Ele estabeleceu a ideia de que o elemento original de todas as coisas era a água, por um lado porque entendeu que dela poderiam originar-se outros elementos (a terra por condensação e o ar por rarefação), por outro porque nela se encerrava a noção de “liquidez primeira do universo”, o que no seu entendimento remetia aos atributos básicos dos deuses, de onde tudo seria proveniente.

Provavelmente discípulo de Tales, Anaximandro aprofundou os estudos empreendidos por seu mestre, mas divergiu dele quanto ao elemento original das coisas, substituindo a água por um princípio, igualmente divino, que ele chamaria de Ápeiron, normalmente traduzido por éter ou por infinito, e que representa um avanço por não se deter numa substância positiva, como a água, especulando uma origem ainda mais anterior, flertando dessa forma, pioneiramente, com a ideia de uma “inframatéria”. Seu discípulo Anaximenes dá um passo atrás e elege o ar como matéria primordial, mas introduz, por outro lado, a noção de um sistema cíclico na formação das coisas, que assim acabam se dissolvendo no princípio originário, para em outro momento tornar a constituir-se.

As contribuições da Escola de Mileto abririam caminho para uma série de especulações, como as desenvolvidas pelo que ficaria conhecido como pensamento pitagórico. Tendo como epicentro a cidade de Crotona, essa escola está baseada nas reflexões promovidas por Pitágoras de Samos e seus discípulos lotados em uma sociedade secreta que, entre práticas filosóficas e místicas, acreditava nos números como a base do conhecimento, o que colocaria seu mestre como o inventor da matemática, apesar de ela já ter sido explorada anteriormente pelo próprio Tales de Mileto.

Os números desempenhavam no pensamento de Pitágoras função semelhante à que, em outras escolas, eram ocupadas pelos quatro elementos, o que faria das relações entre os números o caminho para se entender e conceber o universo. Por conta desse pensamento, o filósofo de Samos seria o pioneiro em descobertas que só mais tarde se tornariam consenso entre os estudiosos. A esfericidade da terra, por exemplo, já havia sido antevista por ele, da mesma forma que a existência dos movimentos de translação dos planetas e de astros de grande magnitude (até aquele momento só a rotação era conhecida).

Talvez a mais impressionante descoberta de Pitágoras e seus seguidores, através de sua astronomia regada a cálculos numéricos, sejam as teorias que permitiram cogitar a hipótese de que a terra não fosse o centro do universo, tese que seria finalmente concretizada quase dois mil anos depois, quando Galileu Galilei divulgou seu sistema astronômico.

Uma outra escola que passou a se destacar no contexto desses primeiros grandes especuladores da natureza teve origem na cidade de Éfeso, a partir das reflexões empreendidas por Heráclito. Ao contrário dos pensadores de Mileto, ele não se concentrou em buscar explicações partindo de um elemento primordial, preferindo investir no que ele entendia como uma propriedade observada em todas as coisas, a impermanência. “Tudo flui”, estabelecerá como sentença, arrematando com uma outra frase a ele atribuída que entraria para a história do pensamento filosófico: “Ninguém entra duas vezes no mesmo rio”.

Assim, para Heráclito a principal característica da natureza era justamente a impermanência, estado que daria margem à existência dos opostos, que, presentes em tudo e determinando todos os eventos humanos, funcionaria como uma espécie de razão universal, ou o “logos”, como ele chamaria. A realidade dos contrários devia então ser entendida como um traço da realidade que deveria dar origem a uma ética, segundo a qual todo o livre-arbítrio dos homens devia passar pela ideia de contrariedade não mais como um obstáculo. Ao contrário disso, as diferenças deveriam irmanar os indivíduos ao invés de separá-los. A guerra, por exemplo, adquire no pensamento de Heráclito um caráter positivo, na medida em que a oposição, no final das contas, teria como resultado o equilíbrio.

A refutação mais conhecida ao pensamento predominante na escola de Éfeso, vem da parte de Parmênides, segundo o qual Heráclito se equivoca por ser demasiadamente confiante nos sentidos. Nascido em Eléa, esse pensador vai se esforçar para demonstrar que a essência das coisas é imutável, sendo o “ser” a única realidade, de forma que a ideia de constante transformação das coisas, o chamado devir, seria um engano propiciado pela crença nos sentidos em detrimento da razão.

É dele a clássica sentença “O ser é e não pode não ser”, apontando para a ideia de que as coisas só existem porque o “ser” lhe confere o caráter de realidade. Se pudesse ser sujeito à constante impermanência, nada simplesmente existiria, pois nenhuma outra estância senão a razão (entendida como um componente do “ser”) poderia desempenhar esse papel. Parmênides refletiu abundantemente sobre os atributos do “ser”, o que fez com que fosse considerado por muitos historiadores o primeiro filósofo metafísico, e sua obra, assim como a de outros da escola eleática, funcionou como ponto de partida para reflexões importantes como a desenvolvida na modernidade por pensadores como Heidegger, por exemplo.

Fechando esse passeio pelos precursores do pensamento filosófico, é necessário citar a contribuição da escola pluralista, na qual os filósofos partilham a crença de que não há um elemento único a partir do qual se compreender o universo, sendo a combinação de múltiplas realidades a verdadeira base de tudo o que existe. O mais significativo representante dessa escola talvez seja Demócrito (e seu conceito de átomo), não só por desenvolver um sistema que por muito tempo repercutiu na história da ciência, mas também porque dialoga tanto com o pensamento de Heráclito, quanto com o de Parmênides.

Segundo este último afirma em seu sistema, apenas o “ser” pode ser pensado, sendo ele ao mesmo tempo imutável e inteiro, pois, se pudesse ser decomposto, cada parte não seria mais “ser”, mas “não ser”. Demócrito contesta essa lógica considerando que o “ser” de um átomo existe conjuntamente com o vazio, sendo essas duas estâncias a base de todas as coisas. Assim, átomo e vazio são a forma primordial de contrários que se intercalam no universo, e das suas infinitas possibilidades de combinação surgem as mais variadas substâncias da natureza.

Dessa forma, o atomismo de Demócrito remodela mas conserva a ideia defendida por Heráclito da importância dos opostos para a dinâmica das coisas, e ao mesmo tempo, ao redefinir o “ser”, alterando a descrição elaborada por Parmênides, permite que ele prossiga sendo entendido como base da realidade. Em outras palavras, o atomismo sistematizado pelo filósofo da escola pluralista acaba por, de alguma forma, compatibilizar uma das questões mais polêmicas e debatidas desse período inicial do pensamento filosófico. E de quebra ainda formulou um dos mais douradoros sistemas de explicação da realidade intrínseca, por muito tempo figurando na base das ciências naturais, só perdendo espaço no século XX, quando sua redefinição culminou no advento da física de partículas.

Apesar de voltados primordialmente para a “physis”, isto é, a natureza e suas estâncias íntimas, os filósofos de todas essas escolas buscaram esboçar sistemas nos quais suas hipóteses sobre a essência do universo podiam ser desdobradas para formas mais complexas da vida, chegando mesmo à possibilidade de explicar as questões humanas a partir de conceitos de sua filosofia. Assim, de alguma forma anteciparam a ascensão do pensamento clássico, quando, a partir das contribuições de pensadores como Sócrates, Platão e Aristóteles, a filosofia passou a se ocupar não mais apenas com a natureza, mas também com as questões que dizem respeito às demais esferas da humanidade.

Leia também: “O pensamento de Pitágoras e os números como base do conhecimento”.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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