O dia do revisor de texto


Para muitos se trata daquele sujeito engessado, rígido, fiel cumpridor das normas da língua portuguesa culta e que vive a corrigir os deslizes de todos aqueles que estão a sua volta em seus assassinatos do idioma de Camões. Se você partilha dessa ideia, saiba que está realmente “por fora” (ops!). Imagina se ao afirmar o seu desconhecimento sobre a função do revisor, este que vos escreve dissesse, por exemplo, que você está “aquém da realidade dos fatos” ou “deveras desinformado sobre a questão”? Enganos à parte, o fato é que o profissional em foco é uma figura bem diferente daquela idealizada pela maioria das pessoas, pelo menos nos dias de hoje.

Pra começar é preciso compreender que o texto escrito não é uma espécie de propriedade da literatura, da arte ou da alta cultura. Ele é, antes de tudo, uma ferramenta de comunicação. E, como tal, é parte fundamental daquilo que se produz numa sociedade como a nossa, altamente baseada em tecnologias de informação. Isso quer dizer que, mesmo sendo possível muitas vezes não mais que “apertar botão”, como se diz, para realizar muitas tarefas antes tidas como complexas, cada vez mais o domínio da língua, tanto falada como escrita, é de suma importância, mesmo para dominar a parafernália tecnológica dos dias de hoje. Resumindo essa ópera, o revisor de hoje tem que acompanhar, estar em dia, com as funções comunicativas que utilizamos no dia a dia.

Um bom exemplo disso são as redes sociais, nas quais muitos textos de função comunicativa são veiculados. Mesmo sob protestos de muitos puristas da língua, a verdade é que o revisor não pode ficar insensível às várias “ondas” que vão e vem nas mídias mais usadas. Mesmo às vezes parecendo colocações vulgares ou esvaziadas de sentido, algumas expressões têm forte atuação mobilizadora sobre as pessoas, e por isso acabam sendo usadas por autores para se obter um efeito mais imediato sobre o público leitor.

Recentemente, uma dessas modas irrompeu nas redes sociais, a famosa “Diz que é cria de…, mas…”. A brincadeira queria fazer uma referência a pessoas que se diziam vinculadas a determinado lugar ou instituição, porém não conheciam detalhes básicos que supostamente comprovariam esses vínculos. Algo como “Diz que é cria da favela, mas nunca soltou pipa na laje” ou “Diz que é cria do Rio de Janeiro, mas nunca ficou preso em tiroteio”. Bom ou mau gosto nas brincadeiras à parte, o fato é que essa fórmula se espalhou pelas redes e obviamente ganhou as ruas. Como é natural, passou também a integrar o repertório de autores, articulistas e redatores do país inteiro. Ao revisor só restou garantir que, dentro da lógica do idioma, a expressão fosse usada de maneira a não ferir as regras da gramática.

Um outro exemplo foi o mote “Se juntas já causa, imagina juntas”, que em algum momento se popularizou pela internet. O meme, que basicamente se refere à ideia de duas pessoas que, juntas, são capazes de criar algum tipo de sensação, foi usado largamente para ilustrar várias parcerias Brasil a fora, e naturalmente passou a frequentar textos e artigos em grande quantidade.

Como se poderia esperar, foram muitas reclamações de puristas e desantenados de todos os tipos contra os revisores que respeitaram a poderosa função comunicativa que se desenhava a partir da curiosa frase. É claro que o “causa” usado na sentença incomodou dez entre dez revisores do país, que preferiam uma concordância mais, digamos, tradicional. Mas para a maioria prevaleceu o peso representado pela força da comunicação nas mídias sociais.

O problema do revisor com relação a esses modismos é que muitas vezes eles passam a algumas pessoas a impressão de vulgarizar o texto, e a partir disso defender a ideia de que aqueles que podem intervir no texto, entre eles o revisor, deveriam cuidar para que o “demônio” das redes sociais não profanasse o sagrado recinto da “flor do lácio”. Pobres de nós – responderíamos a estes – que pouco podemos com a força da língua quando empregada vigorosamente pelo povo. Por mais “escrúpulos de pureza” que habitem a consciência do revisor, ele não pode interferir na capacidade comunicativa do texto. Nesse caso estaria em dívida justamente com o seu maior alvo: o leitor, o que está na outra ponta do ciclo comunicativo.

Só pra lembrar, muitas obras e autores que hoje são considerados baluartes da alta cultura não tiveram uma origem lá muito, por assim dizer, politicamente correta, para usar expressão tão popular nos dias de hoje. Basta ver as peças de Shakespeare, originalmente recheadas de palavras de baixo calão (o público básico do bardo inglês era composto de marinheiros e prostitutas que viviam no cais de Londres, onde encenava seus textos); os poemas satíricos do nosso maior barroco, Gregório de Matos, repletos de insultos, xingamentos e expressões preconceituosas contra os figurões de sua época; e até clássicos da literatura universal, como o Decamerão, de Giovanni Boccaccio, onde o autor florentino não economiza em cenas jocosas, palavrões e apelidos depreciativos, que hoje diríamos de gosto duvidoso.

Enfim, é importante compreender essa visão do revisor, como um viabilizador do ato de ler. A ele cabe não impedir o direito sagrado dos seres humanos à leitura, o que muitas vezes representa compartilhar com formas de escrita de que ele, como conhecedor do idioma, não é lá muito fã. Portanto, caro leitor que em muitas ocasiões combate as expressões supostamente vulgares dos meios de comunicação e das redes sociais, não queira mal ao revisor, quando ele parece estar compactuando com o mau uso da língua portuguesa. Lembre-se sempre que, queiram ou não aqueles que tiveram acesso ao conhecimento mais erudito da língua de Camões, Machado ou Saramago, a língua pertence ao povo e ele é na verdade seu maior agente.

Pra terminar, essa coluna parabeniza os colegas revisores de todos os tempos. Esses profissionais, outrora das penas e canetas e cada vez mais das telas e teclas, que são muitas vezes o anjo oculto dos grandes textos, que geram louros e glórias para seus autores, na maior parte das vezes com total esquecimento daquele que ajudou a melhorar e a evitar gafes homéricas. Ou, como disse o grande João Ubaldo Ribeiro, escritor e articulista da imprensa brasileira, que certa vez se referiu aos revisores como aqueles profissionais que ajudavam os escritores a parecerem mais inteligentes do que de fato eram.

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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.

*As imagens foram


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