O que a seleção brasileira nos diz sobre liderança


No mundo social, líder é o nome que damos a pessoas dotadas da capacidade de apontar caminhos e diretrizes, despertar o senso coletivo nas pessoas e principalmente determinar os passos a serem dados nos momentos mais incertos. No mundo do futebol, essas características também estão presentes no perfil do líder, mas há nesse caso um fator de diferenciação fundamental: no esporte de um modo geral, mas principalmente no mais popular de todos, a ação de liderança não pode ser apenas constante e regular. É necessária também a intervenção cirúrgica e precisa. Em outras palavras, há o momento certo de ser líder, que é exatamente o limiar entre equipes vencedoras e não vencedoras. A trajetória da seleção brasileira em copas do mundo é pródiga em exemplos do que foi mencionado acima.

Um primeiro deles acontece justamente na nossa primeira conquista. Em texto anterior, mencionamos as condições em que o título da seleção brasileira na copa de 1958 foi conquistado. A necessidade daquele grupo de superar, além dos adversários em campo, a própria autovisão que levava a que considerássemos a nós próprios como espécies de vira-latas destinados a jamais sermos grandes. Pois essa importante vitória, não só esportiva, mas também da alma nacional, esteve por um fio, não fosse a atitude – cirúrgica e precisa – de um líder.

Nesse caso chamava-se Didi, um negro brasileiro, de futebol elegante e habilidades incomuns. Mais experiente e vivido, tanto na vida propriamente dita quanto em copas do mundo, em meio a um time de muitos garotos e revelações, foi do meia do Botafogo a atitude de buscar calmamente a bola no fundo das redes brasileiras, após o nosso adversário da final daquela copa – justamente a dona da casa – abrir o placar. Tornou-se emblemática a cena de Didi com a bola embaixo do braço, levando-a tranquilamente para o meio de campo enquanto conversava com o restante da equipe. Palavras mágicas que diziam simplesmente: “Calma, gente, a taça do mundo é nossa. É só jogar o que a gente sabe!”. Foi o suficiente pra afastar o fantasma do passado e começar a escrever uma nova história.

No mundial seguinte ainda tinha Didi, mas ao lado dele dois garotos do time de 1958 que quatro anos depois já eram respeitados pelo mundo inteiro: Garrincha e Pelé. Neste último o Brasil depositava todas as esperanças no bicampeonato, mas quis o destino que o primeiro entrasse para a história. Pelé sofre um estiramento na segunda partida e fica fora do restante do mundial. Para o lugar dele um jogador ainda em ascensão, que acabaria por substituí-lo à altura, o ponta esquerda do Botafogo (de novo o clube da estrela solitária!) Amarildo. Mesmo com a revelação dessa grande promessa, a copa seria ganha principalmente pela performance de Garrincha, que foi o grande nome da competição.

É certo que o Mané já havia encantado o mundo em 1958, com seus dribles desconcertantes e fantásticos. Mas o que se viu nos campos do Chile foi muito mais que um ponta habilidoso. Garrincha fez de tudo! Lançou, fez tabelas, gols e, claro, desfilou seu talento inigualável para envolver adversários. Garrincha não foi o líder no sentido teórico da palavra, até porque isso nem de longe era a cara do eterno ponta da seleção. Mas Mané foi a estrela que guiou a seleção de 1962, ao assumir dentro de campo a função de ser o melhor, não apenas com seus talentos já conhecidos, mas se reinventando, como se dissesse aos outros que poderia ser gênio ao quadrado, por ele e por Pelé, que desfalcava o time.

É verdade que Garrincha foi expulso bobamente na semifinal da copa, só não ficando de fora da final em função de uma manobra esperta da então CBD nos bastidores (não é de hoje que futebol não se ganha só dentro das quatro linhas). Mas ninguém é perfeito! Sorte que os deuses do futebol resolveram não privar o mundo de assistir um time campeão, liderado por aquele que foi um dos maiores de todos os tempos.

O terceiro título mundial da seleção brasileira revela o que poderíamos chamar de uma profusão de líderes. Pra começar o grupo foi formado por uma figura dotada de carisma e personalidade, que praticamente impunham uma liderança natural: João Saldanha. Saindo do comando da seleção há poucos meses antes da copa por uma série de incompatibilidades, o treinador e jornalista deu lugar a outro líder indiscutível. Zagallo fez mudanças decisivas que ajudaram a formar o time que pra muitos é a maior seleção brasileira de todos os tempos.

E como se não bastassem os dois líderes à beira do campo, a equipe ainda contava com atletas que, além de craques incontestáveis, eram figuras de referência em seus clubes, alguns deles também com experiência de copas anteriores. Nomes como Gérson e o eterno capitão Carlos Alberto Torres revelaram muitas vezes em entrevistas como o grupo se valia de lideranças de acordo com o que acontecia nas partidas. “A gente se reunia ali na hora e fazia as modificações que tinha que fazer. Tem hora que não dá pra esperar que o treinador decida. A seleção ganhou muitos jogos com os jogadores conversando dentro de campo”, disse o Canhotinha de Ouro numa entrevista sobre os tricampeões no México.

No tetracampeonato de 1994 uma situação em parte – mas apenas em parte – semelhante à da seleção de 1970. Tal como daquela vez, a equipe era formada por muitos jogadores experientes e remanescentes em mundiais. Isso seria preponderante numa competição caracterizada por um declínio do chamado futebol-arte e ascensão de um jogo basicamente centrado nos aspectos físico e tático. A seleção enfrentou adversários muito retrancados e marcadores, o que tornou muito necessária a combinação de técnica, paciência e experiência. Em jogos duros e nervosos, a atitude de liderança seria fundamental.

E o episódio que talvez mais simbolize isso tenha sido a participação do lateral Branco em uma das partidas chave daquela campanha. O jogo era com a forte e bem organizada seleção holandesa. O Brasil começou muito bem e colocou dois a zero no placar. Depois relaxou e permitiu a reação da equipe batava, que empatou e parecia muito perto da virada que eliminaria a seleção. Branco estava em sua terceira copa e foi para o mundial dos Estados Unidos na reserva. Com a expulsão do titular Leonardo, o lateral entrou de cara naquela partida e usaria toda a sua liderança para ajudar o Brasil.

O lance capital ocorre perto do final da partida, na intermediária de defesa dos holandeses. Em uma entrada pelo meio, Branco tenta uma jogada e na dividida com o adversário cava a falta numa posição na qual ele já havia feito muitos gols de bola parada, ele que era exímio nesse fundamento. O chute certeiro no canto esquerdo do goleiro esfriou completamente o ímpeto do adversário. O Brasil passaria para as semifinais, derrotando um grande e tradicional rival, o que serviu como uma arrancada da seleção para o tetra, colocando na história um time até então desacreditado e até hostilizado pelos torcedores.

Provando o quanto liderança é fundamental em competições de alto nível, a seleção do penta também teve seu momento chave, que funcionou como a prova de fogo para uma equipe vencedora. Ele ocorreu também nas quartas de final, a exemplo do episódio acima contra a Holanda. O jogo era Brasil x Inglaterra e, depois de estar perdendo por um a zero, a seleção se recuperou e virou a partida com um golaço de falta de Ronaldinho Gaúcho. Herói por um lado, o atacante acaba sendo expulso depois de uma entrada desleal no adversário. O Brasil jogou, assim, quase todo o segundo tempo com um homem a menos e teve que segurar o ímpeto do bom time inglês atrás do empate.

Então o experiente time brasileiro passou a desfilar toda a sua experiência, comandado por craques como Rivaldo, Roberto Carlos e o capitão Cafu, que deram uma verdadeira aula de como fazer o tempo passar, segurando a bola, esvaziando o ímpeto do adversário e praticamente anulando a inferioridade numérica. Uma atuação de muita personalidade e frieza dos atletas mais experientes, que souberam tranquilizar toda a equipe e tirar o Brasil de uma situação muito incômoda, abrindo caminho para o penta.

É discutível se na seleção brasileira que atualmente disputa o hexa nos campos da Rússia há uma liderança nítida de algum jogador. A própria estratégia do técnico Tite de não definir um capitão para a equipe permite a leitura de que o grupo não apresenta o líder tão importante para as conquistas como vimos nesse texto. É verdade que há alguns jogadores experientes que parecem já apresentar sinais de certa ascendência sobre o grupo, como talvez sejam os casos de Marcelo e Tiago Silva. Mas se esses ou outros casos se confirmarem como lideranças do time, é algo que vai acontecer no decorrer da disputa. E eis aí uma outra característica importante da virtude de liderar: ela pode ser algo que se impõe com facilidade, presente numa pessoa, como também pode se revelar no calor da batalha, nas exigências do momento.

Foi o caso de Branco, citado acima, que, mesmo com uma equipe experiente e com a liderança incontestável do capitão Dunga, despertou no momento certo de fazer história. Na segunda partida da seleção, contra a Costa Rica, o jogo duro e nervoso deixou à mostra uma equipe com alguns sinais de maturidade, que não perdeu e cabeça nem se precipitou de forma demasiada. Mesmo que não apareça o tão esperado líder, já se pode sonhar pelo menos com uma equipe solidária, que saiba fazer prevalecer o conjunto nos momentos mais tensos. Outras provas de fogo virão pela frente e o time vai ter que de alguma forma se imbuir desses requisitos da liderança, ainda que não esteja personificada em alguém especificamente. Ainda continua sendo possível acreditar. Eu acredito!


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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