O Novo Mundo em pinceladas – Debret e Eckhout


A natureza exuberante dos trópicos quase sempre despertou o imaginário europeu, com ênfase no interesse dos artistas pelas nuances de cores e formas até então menos comuns no outro lado do Atlântico. Por esse motivo, pintores e desenhistas foram historicamente requisitados nas empreitadas coloniais, seja para registrar a paisagem tropical inédita para os europeus, seja para a propaganda dos supostos sucessos das nações colonizadoras.

Albert Eckhout foi um desses artistas que se destacaram. Participante da missão holandesa no Nordeste brasileiro no século XVII, suas pinturas retratando índios, negros e mestiços do país, com impressionante riqueza de detalhes, muito se aproximaram da fotografia, tal a obsessão realística do artista, voltado para expressar com fidelidade a realidade da terra.

Mesmo assim, sua obra não deixou de beirar uma criação alegórica, pois, mais do que abordar a realidade social dos indivíduos sob o governo de Nassau, as obras se destinam sobretudo ao deleite de membros da corte ou a outros nobres, o que impunha, muito mais do que a realidade, uma composição que atestasse o lado positivo e reformador do colonialismo holandês.

A forma com que a pintura se insinua ao espectador sugere interação com a cena presenciada. Esse sentido de abordar os tipos da terra de modo descontraído e alegre atende a um propósito de mostrar a colônia sob uma visão o mais distante possível dos propósitos mercantilistas da empresa colonial, ao mesmo tempo mantendo acesa a visão predominante na Europa de uma América como paraíso descoberto.

Uma lógica semelhante ocorre nas telas em que Eckhout pinta afrodescendentes. Eles mais se assemelham a trabalhadores livres do que a escravos, uma vez que nunca aparecem em situações que demonstrem a condição de subalternidade. Eckhout retrata um quadro que sugere um contexto econômico próspero, onde a abundância de postos de trabalho dispensa a atividade escravista e consequentemente os constrangimentos físicos a ela relacionados.

O cenário social do Brasil holandês também é suavizado pela presença de muitos tipos mestiços estampados em suas telas, o que apontaria também para uma suposta situação de igualdade capaz de produzir casamentos inter-raciais, mais um acréscimo à coleção de índices de liberdade simbolizados pelo novo mundo das Américas.

As produções artísticas de Eckhout repercutiriam tão bem na Europa, que mesmo retornando junto com Nassau – então deposto do comando das atividades da Companhia das índias Ocidentais no Brasil –, ainda por um bom tempo conseguiu manter em evidência a sua arte, em função do interesse cada vez maior que a burguesia do Velho Mundo mantinha a respeito das terras americanas.

A arte do pintor holandês, com seus quadros que retratavam um Brasil idealizado pela necessidade de firmar o projeto colonial na América, desfrutaria de grande repercussão frente ao público consumidor de obras de arte no século XVII. Apesar disso, Eckhout jamais seria reconhecido como um pintor de ponta no cenário das artes plásticas da Europa.

Suas telas marcadas pela extrema perfeição ao retratar os personagens humanos daquela época seriam, porém, fundamentais do ponto de vista da criação de uma visão do europeu sobre o Novo Mundo. Para o Brasil, por outro lado, seu trabalho seria um dos mais importantes registros imagéticos desse período tão profícuo de produção de arte e cultura na história da colonização brasileira.

O outro bom exemplo de atuação artística no estabelecimento de uma estética do Novo Mundo foi Jean Baptiste Debret, o francês que seria o grande autor das imagens do Brasil do século XVIII. Formado nas academias e ateliês franceses, fez parte de uma geração de pintores habituados a retratar os episódios históricos de seu país, principal função adotada pelos estudos de belas-artes na época. Principalmente depois da chegada ao poder de Napoleão Bonaparte.

Assim, Debret já tinha se ocupado por muito tempo na França de função semelhante à que veio executar no Brasil, a de retratar os momentos “oficiais” da corte. E essa proximidade com a história dos nobres portugueses o pintor a exerceria logo no mesmo ano de sua chegada ao país, com o falecimento da rainha D. Maria I e a consequente aclamação do novo rei, acontecimentos de alto valor histórico cujos registros em imagens couberam ao artista.

Anos mais tarde, depois do retorno da família real à Europa e decretada a independência, o pintor atuou também como formador de novos artistas brasileiros através de suas aulas na Academia Imperial de Belas Artes (inicialmente chamada Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios), fundada por D. Pedro I em 1826, chegando inclusive a organizar, em 1829, a primeira exposição pública de pintura ocorrida no país, que continha obras pintadas por seus alunos.

Mas a grande contribuição de Debret para a cultura no país viria mesmo de seus quadros, gravuras e desenhos, que recriaram cenas e detalhes do cotidiano do Brasil oitocentista, onde aparecem não apenas figuras de prestígio na sociedade de então, mas também escravos, mestiços, a natureza e os costumes religiosos.

Durante os quinze anos em que viveu entre nós, Debret procurou retratar as particularidades do povo, desde as paisagens até as habitações, das práticas religiosas a eventos como atividades trabalhistas, danças e enterros. De sua produção pictórica deste período saiu a coletânea “Viagem pitoresca e histórica ao Brasil”, publicada em três volumes, respectivamente em 1834, 1835 e 1839. A obra, lançada depois do retorno do artista a sua terra natal, aborda não apenas imagens com que o pintor se depara mas também cenas que levam a entender um certo sentido da formação do Brasil, principalmente no que se refere à relação entre as raças.

A obra de Debret também revela a ligação emocional que se estabeleceu entre ele e a terra, durante sua estada entre nós. Como afirma em certa parte do livro, seu desejo era mostrar aos estrangeiros uma visão que fosse na contramão da ideia corrente de que o Brasil seria apenas uma terra de coisas exóticas, apenas capaz de despertar interesse pela sua história natural. Para ele, o país merecia figurar entre as nações mais civilizadas da época, e uma obra como aquela poderia contribuir para que isso ocorresse.

Em 1831, com poucos mais de sessenta anos, Debret pede licença ao Conselho da Regência para retornar a seu país. O motivo alegado seria a necessidade de voltar ao clima europeu para tratar da saúde, mas, como afirmaria mais tarde, o desejo de rever familiares e a necessidade de organizar seu trabalho para publicar o primeiro de seus três volumes teriam sido as reais causas.

“Viagem pitoresca e histórica ao Brasil”, aliás, foi por muito tempo procurada na Europa por quem desejava saber informações sobre o Novo Mundo, o que lhe renderia uma espécie de reconhecimento da autoridade, não apenas pela fidelidade com que retratou as características brasileiras como também pelos anos que passara viajando por várias regiões.

Debret viria a falecer em 1848 aos 80 anos de idade, jamais voltando ao Brasil, mas seu legado persiste até a atualidade, tanto pelo interesse crescente que estudiosos e pesquisadores têm demonstrado pelo papel e pelas obras do artista, quanto pelos registros deixados das imagens do Brasil oitocentista, ainda hoje servindo a muitos brasileiros como informação pictórica a respeito do Primeiro Reinado.

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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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