O julgamento mais famoso da história – Jesus de Nazaré


Os últimos momentos da vida de Jesus de Nazaré constituem uma das narrativas mais conhecidas da história da humanidade. A paixão, o calvário, a crucificação, a via crucis são quadros de um evento que foi capaz de dividir as eras, entre outras coisas, pelo forte componente envolvendo aspectos emocionais, éticos e religiosos. A força desses acontecimentos ajudou na construção de uma mitologia que, como todas elas, aparece como espécie de evento “fora da história”, apesar de apresentado como fato real, documentado e ornado supostamente de provas documentais.

Com essa introdução queremos chamar a atenção para um aspecto pouco citado, fora dos meios científicos e acadêmicos, da história vivida por Jesus, no que diz respeito ao seu julgamento e condenação, diante de algumas importantes contradições entre o apresentado pelos evangelhos – a principal fonte histórica de onde se extraiu a versão mais divulgada dos fatos – e aquilo que é possível conhecer sobre os códigos penais judaico e romano, sob os quais ocorreu o processo que o condenou à morte.

Primeiramente é importante considerar que a lei civil judaica era, já naquela época, um bem detalhado e estruturado código direcionado para o cumprimento do que naquele contexto se entendia como justo. Muitas das visões sobre justiça aplicadas nos principais sistemas de justiça do ocidente já estavam presentes nas leis civis daquele povo, como são os casos, por exemplo, da presunção da inocência e do direito de uma pessoa acusada de não ser obrigada a produzir provas contra si própria.

Alguns pontos porém são específicos da cultura e religião judaicas. Os juízes encarregados de um julgamento primeiro tinham que atingir uma maioria de votos a favor da condenação. Se isso fosse obtido, cada julgador devia retornar a sua casa e viver uma espécie de retiro, consagrado a meditar profundamente sobre se de fato o acusado devia ser considerado culpado. Só no dia seguinte, quando a corte tornava a se reunir, as decisões eram de fato válidas. Relata o evangelho de Lucas que o veredito saiu no meio da madrugada do dia seguinte, ou seja, apenas algumas horas após a primeira votação, e não um dia inteiro, como prescrevia a lei.

Uma característica interessante nesse processo: só os julgadores que tivessem votado pela condenação poderiam mudar de ideia, jamais os que tivessem optado pela absolvição. Uma medida voltada para impedir que dados que não tivessem sido citados na primeira audiência pesassem na decisão dos juízes. Por conta desse longo tempo exigido, um julgamento não podia ocorrer nas vésperas de uma festividade religiosa, como era o caso da Páscoa dos judeus, quando, segundo os evangelhos, teria se dado o caso de Jesus.

O código judaico também estabelecia, como hoje, que um acusado tivesse direito a uma defesa, o que significava dizer que um dos membros da corte julgadora era destacado para rebater os acusadores. Consequentemente a lei declarava inocente uma condenação por unanimidade, já que com isso ficava subentendido que o defensor não atuou para propiciar uma defesa justa para o réu. Pelo relato dos evangelhos, a defesa ficou por conta do próprio acusado, segundo deliberação de Caifás, o sumo-sacerdote, que aliás sequer poderia atuar como acusador (devia antes protegê-lo), conforme fica claro pelas palavras que lhe são atribuídas no livro de Mateus: “Conjuro-te pelo Deus vivo que nos digas se tu és o cristo, o filho de Deus!”.

Jesus também teria sido condenado a partir de depoimentos de duas testemunhas, cujas declarações foram muito diferentes entre si, o que era considerado um grave erro processual, que deveria determinar a imediata absolvição do acusado. Ainda assim, as mesmas testemunhas deveriam reaparecer na segunda audiência confirmando suas afirmações, o que não aparece em nenhum relato.

As irregularidades jurídicas também envolveram o código de justiça romano, que da mesma forma que o judaico continha uma série de preocupações para que não se condenasse um inocente. Com as irregularidades processuais acima citadas, certamente o governador da Judeia reverteria o veredito e declararia automaticamente a inocência do acusado. Foi por esse motivo que os sacerdotes do Sinédrio apresentaram a Pilatos uma acusação diferente da que eles próprios utilizaram para condenar Jesus, alegando que suas ações representavam, não agressão à lei mosaica, mas traição a César.

Depois de Pilatos interrogar o acusado e “não achar nele crime algum”, ou seja, nada que afrontasse a lei romana, o governador da Judeia tinha todo apoio legal para simplesmente decretar a inocência de Jesus, mas pressionado pela intensa mobilização que partiu dos sacerdotes judaicos tentou ainda o subterfúgio de empurrar o caso para o governante da Galileia, terra natural de Jesus, onde teria cometido alguns dos crimes de que era acusado. Herodes, por sua vez, também deixa pesar o aspecto político e devolve o réu ao governador, por também não reconhecer crime. Pela lógica natural do direito romano, as duas recusas seriam suficientes para que Jesus fosse declarado inocente e posto em liberdade.

Segundo observaram muitos estudiosos que se debruçaram sobre o processo envolvendo Jesus, o governador ainda tenta um último artifício para evitar ceder ao ativismo político dos sacerdotes do Sinédrio. O evangelho de Lucas relata que Pilatos ameaça castigá-lo e em seguida colocá-lo em liberdade. A medida seria obviamente ilegal, além de contraditória, pois não faz sentido açoitar alguém do qual não acha nenhum crime.

A interpretação dessa aparente ilegalidade é que o governante supôs que, aplicando um castigo opcional, deixaria satisfeitos os judeus, que assim talvez abrissem mão da pena capital que tinham como objetivo. O que inclusive se apoiava em outra deliberação dos códigos penais, tanto romano quanto judaico, segundo os quais não se podia impetrar a um acusado mais de uma punição pelo mesmo crime. Em outras palavras, se o subterfúgio tentado por Pilatos tivesse tido resultado, deveria ter sido criado um outro processo para condenar Jesus à pena pretendida pelos sacerdotes judeus.

Pelo visto até aqui, pode-se concluir que as discrepâncias presentes no julgamento de Jesus, com dois códigos penais sólidos e contundentes sendo claramente burlados para se chegar a uma condenação, atestam que o caso é um dos mais evidentes exemplos históricos de desvios da lei para satisfazer interesses políticos de grupos empoderados, ao final das contas mantendo coesa uma aliança que mantinha unidas as duas partes, apesar das aparentes adversidades.

A outra hipótese, nada desprezível, é que as narrativas sobre o julgamento do Cristo presentes nos evangelhos canônicos não tenham sido fiéis à realidade das instituições que funcionavam na Palestina do início da nossa era. Possibilidade corroborada pelo fato de muitos textos cristãos sobre o período (obviamente tidos como apócrifos) não fazerem qualquer menção à paixão, julgamento e condenação de Jesus, além de também pouco constar dos documentos romanos legitimados historicamente. O que é de fato bastante intrigante haja vista tratar-se de um povo muito exigente quanto aos registros dos processos conduzidos por sua justiça, que inclusive estão entre as principais fontes históricas sobre o império romano.

Seja como for, o caso de Jesus mostra quão frágeis podem ser os sistemas humanos, uma vez postos em xeque por inteligências capazes de avistar além do horizonte mediano, como foram os casos de figuras como João Batista, Sócrates e Gandhi, todos não por acaso com fim semelhante. Mas todos da mesma forma portadores de ideias que transcenderam o tempo e se firmaram como inspiradoras dos princípios humanos.

Leia também: “O papel da diversidade de ideias na formação do acervo do cristianismo”


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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