O grito forte dos Palmares


Zumbi é considerado a maior expressão da identidade afro-brasileira, tido por muitos como um grande herói nacional, em nada ficando atrás de figuras quase unânimes, como Tiradentes, ou de trajetória, digamos, discutível, como Duque de Caxias. É preciso considerar no entanto que a memória do grande líder negro foi menos historiada que construída, o que daria margem a muitas hipóteses e interpretações, daí o componente muitas vezes lendário ou mítico em torno de sua figura.

Isso porque a documentação historiográfica referente a ele, além de esparsa, traz a peculiaridade de ter sido quase toda composta pelo olhar de seus inimigos, isto é, daqueles que se aplicaram na proeza de enfim debelar o resistente quilombo de Palmares.

Uma das questões mais nebulosas envolvem a sua origem. Há discordância entre os historiadores se teria nascido no quilombo ou só depois teria lá chegado, o que seria determinante para saber se Zumbi nasceu livre ou escravo. Uma das versões da trajetória do líder de Palmares que se tornaram mais populares dá conta de que ele teria sido capturado numa das muitas investidas que bandeirantes costumavam aplicar em quilombos para raptar negros e tornar a vendê-los, atividade que se tornaria muito comum no nordeste brasileiro no século XVII. Teria então ido parar sob cuidados de um padre jesuíta, que o teria alfabetizado, ensinado o catecismo católico e o iniciado nos ofícios religiosos. Prevalecendo essa hipótese, Zumbi teria sido detentor de cultura incomum até para brancos naquela época.

Os estudos sobre o quilombo é que têm levado a muitas deduções a respeito do papel de Zumbi em toda a saga de Palmares. Se de fato ele foi formado por escravos fugidos de fazendas, é muito provável que tenha sido habitado primordialmente por homens, pois as propriedades em geral continham um número muito pequeno de mulheres. Outra informação é que devia haver o amplo predomínio de africanos provenientes de cultura Angola ou bantu, com seus grupos linguísticos variados e os muitos conhecimentos agrícolas, pecuários e até de metalurgia já trazidos do continente de origem.

É muito provável também que em Palmares a pouca presença feminina levasse a uma organização social poliândrica, isto é, na qual as mulheres tivessem vários maridos, o que não era incomum em certas regiões da África. Aliás, quanto à questão da composição social do quilombo, deve-se levar em conta a presença na população de Palmares de muitos indígenas, como se deduz dos muitos objetos de cerâmica encontrados em escavações arqueológicas posteriormente realizadas na região da serra da Barriga, atividade que em geral ficava a cargo das mulheres. Isso dá margem à possibilidade até de que o líder negro tivesse sangue indígena, como já chegaram a cogitar alguns historiadores. Um Zumbi curiboca ou cafuzo, portanto.

Uma circunstância histórica permitiu o crescimento demográfico de Palmares. A chegada dos holandeses a Pernambuco em 1630 mobilizou a atenção dos proprietários de terra, que passaram a concentrar esforços em expulsar os indesejados invasores, que vinham resolvidos a lutar pela exploração do rentável negócio da produção açucareira. Só quando se livraram definitivamente das tropas batavas, quase 25 anos depois, é que o controle do quilombo voltou a virar prioridade.

Agora, porém, havia crescido muito, aumentado suas atividades exploratórias e produtivas – o que significa dizer que, de alguma forma, também eram concorrentes dos grandes proprietários – e demandaria muito mais trabalho e energia para ser desalojado. Muitos escravos que haviam sido recrutados por seus senhores para lutar contra os holandeses se fortaleceram com a mudança de status e se aventuraram a viver em Palmares, reforçando o quilombo inclusive do ponto de vista bélico.

A boa notícia para a memória de Zumbi é que os feitos que lhe conferiram a condição de grande herói do povo negro (e até, por que não, de toda a população brasileira, já que o quilombo também registrava diversidade racial) desfrutam de importantes evidências históricas. Trata-se de sua atuação como líder de Palmares depois do acordo assinado por Ganga Zumba com as autoridades de Pernambuco em torno de 1678.

O então grande comandante da resistência contra os proprietários de terra concordara com a proposta de desarticular o quilombo em troca da garantia de liberdade para todos os que tivessem nascido em Palmares, que então ganhariam terras, poderiam comercializar livremente e ainda se tornariam súditos da coroa. O problema era com aqueles que haviam fugido para a serra da Barriga em busca de sua liberdade, que teriam que ser restituídos a seus senhores, situação que talvez fosse até a do próprio Zumbi, já que não se tem certeza se sua condição original era a de livre ou de escravo. De qualquer modo, sua opção foi por combater toda forma de opressão patrocinada pelas classes dominantes de então.

Ganga Zumba e os que se beneficiariam do acordo já haviam deixado o quilombo e se instalado nas terras que lhes foram cedidas. Zumbi, que era uma espécie de imediato (algumas narrativas falam de um parentesco entre os dois), resolve então assumir a liderança e, ao lado dos que voltariam à condição de cativos, organiza uma nova resistência. A luta duraria ainda mais de dez anos até que as tropas lideradas pelo bandeirante Domingo Jorge Velho, formada por quase dez mil homens segundo alguns documentos, conseguisse debelar definitivamente o quilombo.

A captura de Zumbi ocorreria da mesma maneira que a de muitos outros grandes heróis da história, através de traição. O destino do corpo do líder negro de posse dos vencedores também não fugiria à regra: foi esquartejado e exposto, ato que pretendia apontar não só para a morte física como para o esquecimento histórico, o que obviamente não aconteceu. A trajetória de Zumbi antecipa, dessa forma, muitos pontos das lutas populares contra os desmandos do sistema de exploração mercantilista que marcou os séculos da colonização brasileira.

Da questão racial à da posse da terra, passando pelo direito à liberdade e a busca da igualdade, a posição obstinada do líder de Palmares passaria a ser uma referência, não apenas para as motivações dos afrodescendentes do Brasil na busca por desfazer o abismo causado pelos mais de três séculos de escravidão, como para todos os que se mobilizem em favor de uma sociedade mais justa e com oportunidades iguais para todos, ideal já alcançado no campo dos direitos sociais, mas ainda não definitivamente concretizado no dia a dia dos brasileiros.

*Na ilustração, Zezé Mota e o saudoso Antônio Pompeo em cena de “Quilombo”, superprodução do cinema brasileiro.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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