O choro dá samba


A maior parte dos historiadores da música brasileira concorda com a ideia de que o samba é filho do choro. Este último é um estilo desenvolvido na origem por artistas virtuoses em geral com sólida formação erudita, como eram os casos, por exemplo, de dois grandes nomes que estão entre os fundadores desse estilo, Ernesto Nazareth e Joaquim Callado.

Ao executarem as valsas, polcas e outros ritmos europeus que aprenderam nas escolas de música e conservatórios, deixaram-se impregnar pela atmosfera musical predominante na capital do país, com seus lundus, batuques e cateretês oriundos da musicalidade africana. Assim nasce o choro.

À medida que ele se populariza pela cidade, vai chegando aos morros, áreas desprestigiadas da capital, habitadas fundamentalmente por ex-escravizados e afrodescendentes livres, mas atingidos pela falta de oportunidades. Ali o choro se “descomplica”, isto é, feito por gente que não teve formação musical e normalmente nem condições de ter um instrumento, deu origem a uma forma improvisada de tocar, baseada em instrumentos de percussão. Isso permitia a expressão de músicos de muita intuitividade musical e principalmente sensibilidade artística. Assim nasce o sambista, que no começo era chamado exatamente de chorão.

Uma novidade importante: no samba a melodia começa a ser acompanhada por letras, contrariando nesse ponto o choro, que é um ritmo basicamente instrumental. Esse movimento representa também a entrada de outro componente muito presente na cultura do samba: a crônica do dia a dia, a realidade da vida que se leva em centros urbanos como a capital federal de então. Essa nova característica seria responsável pelo surgimento de grandes mestres em retratar a vida popular, como um Noel Rosa e um Adoniran Barbosa.

O samba não demora a sair dos morros e cair nas graças do gosto brasileiro, se configurando cada vez mais como uma paixão nacional. O que significa dizer que ele foi capturado pelas narrativas hegemônicas do Brasil, de que é um grande exemplo o Estado Novo e o prestígio que buscou conferir ao samba configurando-o como manifestação genuinamente popular.

Quer dizer também que, inclusive, passou a ser também coisa de branco, afinal esse foi o viés predominante na cultura brasileira, um país que se pretendia sobretudo europeu, relegando outras referências culturais à situação de coadjuvante. A condição do samba feito pelos negros triunfar nacionalmente era ser também coisa de branco.

E aí nos encontramos com um dos grandes nomes do gênero, Vinícius de Moraes. O samba atravessa o século XX como genuína expressão da cultura brasileira, preservando a sua estrutura tradicional: ele se tornou branco na poesia (com letras cada vez mais geniais, figurando no olimpo dos compositores brasileiros) enquanto a emoção e o sentimento nele presentes continuavam a cargo da africanidade brasileira. Assim ficou estabelecido.

Vinicius de Moraes gostava de se intitular o “branco mais negro do Brasil”. Afirmação que foi de alguma forma confirmada ao longo da sua carreira, inspirada em grande parte nas referências do que se pode chamar de uma africanidade brasileira, como é possível constatar em várias temáticas de letras suas, além de outras manifestações, como o disco que gravou com seu parceiro Baden Powell, a partir dos toques de atabaques das entidades de cultos de matriz africana, e até a sua própria conversão ao Candomblé.

Uma das suas grandes composições, o “Samba da Bênção”, mais uma bela parceria com Baden, é bastante emblemática dessa ligação do poeta com as raízes africanas no Brasil. E é com mais um mágico versos de Vinicius que encerro essa resumida história do mais brasileiro dos estilos musicais: “Ponha um pouco de amor numa cadência. / E vai ver que ninguém no mundo vence / A beleza que tem num samba, não. / Porque o samba nasceu lá na Bahia, / E se hoje ele é branco na poesia, / Se hoje ele é branco na poesia, / Ele é negro demais no coração.”.

Amigos, essa coluna vai dar uma parada por duas breves semanas. Um grande carnaval a todos os queridos leitores, com muita festa e alegria, mas sem excessos!


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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