Empoderamento feminino, elas querem o mundo de volta


O cientificismo do século XIX estabeleceu a noção de que boa parte das primeiras sociedades humanas eram matriarcais, ou seja, estavam organizadas em torno da referência e da autoridade femininas. Por influência das ideias oriundas das descobertas de Darwin, alguns estudiosos atribuíam à inferioridade evolutiva o fato de nossos ancestrais serem regidos pelas mulheres. Segundo essa visão, como a atividade sexual era praticada unicamente atendendo a fins instintivos e reprodutivos, as mulheres, que eram as únicas que podiam reconhecer os filhos, acabavam se firmando como referência para eles, já que não tinham ideia de quem seriam seus pais.

O matriarcado então teria sido substituído pelo domínio dos homens à medida que a cultura foi evoluindo para relações monogâmicas, mais próximas a nossas noções atuais de família. Se referindo a um contexto bem posterior, pensadores como Engels e Marx atribuíram ao surgimento do direito de propriedade o advento do poder masculino. Conquistando a terra através de guerras, os homens passavam a exercer plenos poderes sobre suas posses e aí teriam começado a impor fidelidade a suas parceiras e afirmado pela força seu direito de governar.

Reflexões científicas ou filosóficas à parte, o fato é que no passado muitas das culturas que chegaram até nosso conhecimento são pautadas na supremacia ou na segurança da mulher como ponto de referência. Uma das mais conhecidas menções a sociedades matriarcais são as Amazonas, mulheres gregas a quem se atribuíam grandes habilidades guerreiras que lhes davam autoridade para chefiar suas comunidades. Elas teriam sido as primeiras a amansar cavalos e a utilizá-los de várias maneiras, motivo pelo qual dão ainda hoje nome às mulheres que se dedicam a práticas equestres.

Conta-se que foi ao encontrar pelas florestas do norte do Brasil índias guerreiras chefiando tribos inteiras que os jesuítas batizaram o grande rio e depois o estado com o nome de Amazonas, pois acharam que, mais que uma lenda, as antigas guerreiras gregas existiam e viviam na América.

Em outras partes do continente americano a força antes atribuída às mulheres é algo bem mais concreto. Um bom exemplo ocorre na cultura Azteca, na qual muitas divindades femininas imperavam, sendo objeto de culto. É nessas referências de entidades reverenciadas por seus ancestrais no México que Frida Khalo foi buscar a estética com a qual propôs um surrealismo que sugeria o fortalecimento da energia feminina, num mundo de intensas turbulências sociais, como o do entreguerras, marcado pela predominância do poder masculino. Surrealismo aliás que seria um dos primeiros movimentos artísticos do ocidente a erguer o feminino a uma posição de destaque. Como não lembrar das muitas obras de Salvador Dalí consagradas a Gala, sua eterna musa!

Aqui no Brasil, um dos grandes exemplos de matriarcado ocorreu entre as comunidades afrodescendentes. As mulheres foram o grande elemento de socialização dos indivíduos de origem africana numa sociedade dominada por valores ocidentais trazidos da Europa. Eram em sua maioria as provedoras dos lares, e de suas relações com os “brancos” dependiam as oportunidades de trabalho de seus companheiros e filhos.

Nas grandes comunidades negras do Rio de Janeiro no início do século XX, essas matriarcas africanas ficariam famosas por agregarem em torno de suas casas atividades culturais, que iam da culinária às práticas religiosas, ajudando a fortalecer uma cultura que mais tarde culminaria no samba e no carnaval. Tia Ciata, a lendária baiana que morava na Praça Onze, é um exemplo de uma dessas grandes “iabás”, como eram chamadas.

Aliás, é também da África outra grande referência de mulher que não se dobrou à suposta supremacia masculina. A rainha Nzinga nasceu num reino da atual Angola e notabilizou-se por ter liderado por muitos anos a resistência de seu povo às tentativas de capturas para a escravidão. Para chegar a essa posição de comando teve primeiro que superar a autoridade de seus irmãos, que herdaram o trono deixado pelo pai. Ela não hesitou em enfrentar os homens da família para tornar-se uma lenda em seu país e também para os que já viviam como escravos na América, que por muito tempo sustentaram a crença de que um dia a grande soberana chegaria para libertar seu povo.

Em culturas antigas da Europa os celtas é que dariam os grandes exemplos da força do papel social desempenhado pela mulher. Elas não tinham propriamente supremacia sobre os homens, mas como esse povo não fazia nenhuma distinção de gênero várias mulheres puderam se destacar em importantes áreas, inclusive na guerra. Nos escritos do militar romano Tacito, estão registrados os feitos de Boudica, rainha de uma das tribos, que liderou um gigantesco levante e trouxe muitos embaraços aos até então donos do mundo.

E foi também da cultura celta que saíram as famosas bruxas, imortalizadas como símbolo da intolerância cristã com as mulheres. Perseguidas por seus supostos poderes mágicos e ligação com o diabo, elas representam o fim do matriarcado que se perde quando o cristianismo passa a dominar a Europa. A elas restou arder nas fogueiras da Idade Média, muitas jamais aceitando abjurar de suas convicções.

Por motivos bem mais concretos, uma outra condenação ao fogo teria dado origem ao Dia Internacional da Mulher, no caso o famoso episódio da fábrica têxtil em Nova Iorque no qual mais de cem mulheres teriam sido trancadas enquanto o edifício ardia em chamas, tudo porque lideravam uma manifestação pedindo melhores condições de trabalho, naquele final de século XIX, quando a ferocidade do capitalismo industrial impunha uma jornada de semiescravidão aos trabalhadores.

Mesmo sem ser um fato comprovado historicamente, ele sintetiza na verdade aquilo que sempre marcou a atividade feminina principalmente nas sociedades dominadas por homens: a força quase sobrenatural na luta por um mundo melhor, seja através da guerra, da religião ou simplesmente da feminilidade. E o mundo de hoje, com o empoderamento constante do sexo nada frágil, mostra que elas não parecem nada conformadas em deixar que tudo continue nas mãos dos homens.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.

*Na ilustração do texto, Michelle Obama e Fernanda Montenegro, dois exemplos inquestionáveis de mulheres poderosas da atualidade.


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