Depois do “terra à vista” – A trajetória de Pedro Álvares Cabral


Legenda: O marco do descobrimento, em Porto Seguro, BA.

Os navegadores europeus sempre foram envolvidos, na tradição ocidental, em uma aura de heroísmo, a eles sendo atribuídas qualidades de coragem e bravura, necessárias para levar adiante a iniciativa de singrar os oceanos rumo ao encontro de terras distantes. Uma fama que para ser construída passou pela valorização das navegações enquanto feitos históricos e principalmente por uma visão de caráter milenarista, que dava a eles um papel importante numa eventual redenção da humanidade. Em outras palavras, as navegações e seus agentes foram pintados como espécies de missionários, capazes de unir realidades muito diferentes entre si na construção de uma nova cultura humana.

Uma visão, porém, que historicamente pouco se relaciona ao perfil dos navegadores é a de agressivos empreendedores. Mais que idealistas e aventureiros, tiveram de ser em alguns momentos verdadeiros déspotas, mais se assemelhando a piratas ou corsários, tradicionalmente considerados o “lado mau” do período expansionista. A trajetória de Pedro Álvares Cabral nos anos posteriores a sua chegada no atual litoral da Bahia é um bom exemplo desse perfil poucas vezes atribuído aos comandantes de expedições.

Não mais que dez dias depois de declarar achadas as terras de Vera Cruz, o navegante português já partia em direção ao que parecia ser sua meta principal, as tais “Índias” com suas possíveis riquezas. Com algumas embarcações a menos em relação à quantidade com que saíra da Europa rumo à costa sul da América, a frota de Cabral atingiria em pouco tempo o litoral africano, parando na ilha de Quíloa, na atual Tanzânia, não sem antes enfrentar uma dura tempestade que resultaria na perda de embarcações e de homens, dentre os quais o experiente Bartolomeu Dias, que sucumbiu mesmo já conhecendo a região quando navegava rumo ao Cabo da Boa Esperança. Esses acontecimentos estão relatados no único documento que registra a trajetória dos navegadores portugueses depois da chegada à Bahia, o conhecido “Relação do Piloto Anônimo”.

Seguindo pela costa africana, frequentemente parando pra fazer relações comerciais em cidades que abrigavam atividades mercantis – e eis aí uma outra função esperada dos navegadores, a de servir de fomentador de negócios, que serviriam aos interesses comerciais das coroas que patrocinavam o projeto –, as naus cabralinas atingiriam a famosa cidade de Calicute, na índia, em setembro de 1500. Os contatos iniciais com os governantes locais foram promissores e mal esconderam os imprevistos que se avizinhavam.

Depois de obter permissão para instalar uma feitoria na região, os portugueses tiveram de enfrentar ataques de guarnições lideradas por comerciantes indianos e árabes que se sentiram prejudicados com a concorrência dos europeus. Dentre as muitas baixas ocorridas no conflito estava outro personagem conhecido na história das navegações e especialmente do Brasil, o escrivão Pero Vaz de Caminha. Sentindo-se traído pelo governante da cidade, que sequer lhe dera alguma justificativa sobre o ataque, Cabral comanda um bombardeio de dois dias inteiros a Calicute, isso depois de atacar embarcações mercantes de proprietários árabes, inclusive saqueando mercadorias. Uma outra faceta, pouco conhecida, do simpático “descobridor” do Brasil aí desponta, a de estrategista bélico, que não poupou artilharia contra os inimigos. Só no ataque aos navios alguns historiadores apontam a ocorrência de algo em torno de 600 mortes.

As atrocidades bélicas em parte se justificam pelo fato de que, ao contrário do que se pode imaginar, um navegador não retornaria à Europa para ser cumulado de glórias apenas por ter encontrado terras. Era necessário também apresentar resultados mais concretos, motivo pelo qual o que restou da frota de Cabral ainda teve de se aventurar a tentar negócios em outras partes do Índico. Seria enfim em Cochim, cidade vassala a Calicute, que o navegador conseguiria realizar os acordos que lhe permitiram levar os carregamentos de especiarias com que pôde finalmente convencer o rei de que os investimentos tinham valido a pena.

Em 1501, Cabral retorna a Lisboa com o que restou de sua frota e, apesar de saudado no Tejo e recebido com honras pelo rei D. Manuel I, não teve vida fácil. Agraciado com uma pensão vitalícia por seus feitos marítimos, vem a descobrir tempos depois que o valor pago a Vasco da Gama, por serviços semelhantes, era mais de dez vezes maior que o seu. Além disso, o rei manda preparar uma outra expedição para retaliar os governantes de Calicute pelos prejuízos de bens e de vidas causados às frotas de Cabral (que ficaria conhecida como “Esquadra da Vingança”), mas oferece a missão para Vasco da Gama, com o “descobridor” do Brasil sendo incluído na empreitada apenas como um mero participante.

O pouco de dados bibliográficos que restou sobre Pedro Álvares Cabral depois da expedição às Índias (estima-se que muito tenha se perdido, seja no grande incêndio que atingiu Lisboa por volta de 1580 ou no terrível terremoto de 1755) sugere que esse desprestígio por parte da nação teria lhe causado um imenso desgosto, que o levaria a recolher-se a uma vida íntima e solitária, distante da corte e da própria navegação.

Seu falecimento, ao que parece, teria se dado no ano de 1520, na cidade de Santarém, onde seu túmulo ficaria esquecido por quase três séculos. Apesar da importância que a “descoberta” de Cabral veio a ter pelos séculos seguintes, quando o Brasil se tornou um dos mais efetivos pilares da economia do mundo conhecido à época, foi um brasileiro a trazer novamente para o horizonte da história a figura do navegador. Foi o historiador Adolfo de Varnhagen que encontrou seus restos mortais na capela de um convento em Santarém em 1839. Quase cinquenta anos depois o corpo foi exumado a pedido do imperador D. Pedro II e alguns fragmentos de ossos foram para o Rio de Janeiro, para compor a memória histórica do país sobre o primeiro ocidental a fixar as bases para a posterior ocupação dessa parte da América.

Discussões à parte – legítimas, aliás – sobre as reais circunstâncias históricas que envolveram a chegada dos portugueses, a biografia conhecida de Cabral serve para mostrar que, muito além da glamourização que a historiografia conferiu aos grandes navegadores da Era Moderna, em seu tempo tiveram que demonstrar a viabilidade de seus projetos expansionistas através de conquistas concretas, o que implicou que, mais que grandes técnicos da arte de marear, tinham de muitas vezes exercer papéis diferentes, como o de diplomatas, comerciantes, estrategistas militares e até de corsários. Uma maneira enfim nada tranquila de se perpetuar na história.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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