Cultura Brasileira na Rede


“Bendito o que semeia livros, livros a mancheias, e faz o povo pensar”, já dizia o grande poeta brasileiro Castro Alves. Um verso cada vez mais importante numa data como a de hoje, em que se comemora no Brasil o Dia Nacional do Livro. Difícil imaginar onde estaria a humanidade se não fosse esse objeto, talvez ainda em cima de árvores fugindo de feras selvagens. O livro é algo tão poderoso que são inúmeros pela história os exemplos de destruição de acervos como forma de apagar a vida real. Foi assim que a biblioteca de Alexandria, no século I a. C. foi transformada em cinzas deixando uma imensa lacuna na cultura humana. E foi também pra inibir mudanças na vida real que existiram os atos de fé, as queimas de livros em praças públicas e as listas tornando malditos quem escrevia e quem lia.

Os exemplos no sentido oposto também atestam o poder desse amontoado de papéis, às vezes pesado, incômodo e difícil de carregar, mas mesmo assim sempre transportados por quem já percebeu que mal com eles, pior sem eles. Não foi à toa que mesmo precisando vir às pressas para a América, com as tropas de Napoleão já pisando em solo português, o rei Dom João VI não hesitou em transplantar a magnífica biblioteca da corte para seu novo hábitat no Rio de Janeiro. E foi também pelo poder do livro que a mitologia de nossos patrícios de além-mar registra um Luiz de Camões se condenando a perpétuo sofrimento pela perda da pessoa amada, que teve que ser abandonada à fúria dos mares para que fosse salva uma das maiores obras já escritas em língua portuguesa.

Apesar dessa bela herança de valorização do livro, é fato que ele ainda não encontrou entre nós a dimensão que seria esperada para que de fato se pudesse fazer uma nação verdadeiramente grande. Isso a despeito de tantos grandes escritores, compositores, poetas, cronistas etc., que viveram e nasceram nessa terra. Como você deve saber, caro leitor, esse narrador que vos fala, e que está entre a minoria de brasileiros amantes do livro (na qual você, que está me lendo agora, provavelmente está também incluído), também teve sorte de figurar em outro grupo ainda mais seleto, o daqueles que tiveram oportunidade de escrever livros.

E já que o reduzido espaço dessa coluna não me permite estender mais sobre autores e livros magistrais produzidos em nosso país, permito-me a liberdade de pelo menos falar um pouco sobre a minha obra mais recente, que tive a felicidade de lançar na última Bienal Internacional do Livro do Rio, com ajuda da Associação de Professores do Estado do Rio de Janeiro.

“Cultura Brasileira na Rede” foi fruto da experiência de escrever livros nos meios digitais antes de lançar da maneira, digamos, tradicional. Pelos caminhos da grande rede primeiramente expomos o resultado de nossas reflexões acerca da história e dos personagens desse nosso Brasil, meu principal objeto de interesse literário. Sempre visando apresentar um país a partir de um olhar diferente daquele adotado pelo chamado senso comum. Uma cultura com suas surpresas, curiosidades e mitos, alguns dos quais postos abaixo por aquele tal poder de que falamos acima, desse objeto mágico chamado livro.

Foi ali em nossas páginas que mostramos lados inesperados e absolutamente sedutores de alguns dos personagens mais conhecidos da cultura brasileira. Foi o caso, por exemplo, do Rei do Baião, Luiz Gonzaga, um símbolo da nordestinidade, que na verdade foi um tipo criado e aperfeiçoado muito longe das terras do semiárido, na solidão dos filhos do sertão pela Cidade Maravilhosa. Um ícone desenvolvido a partir da saudade de uma gente obrigada a viver longe de suas raízes e por isso totalmente disposta a consumir os sons, gostos e cores de sua terra natal.

A reflexão sobre alguns dos momentos mais emblemáticos da história brasileira não ficou de fora de “Cultura Brasileira na Rede”. É o caso, por exemplo, da nossa Independência, personificada no célebre e famoso Grito do Ipiranga, tantas vezes reencenado em obras de ficção, que inundam o imaginário do país. Optamos por focar um lado pouco abordado desse momento, que foi o aspecto continental da conquista de nossa autonomia política, mostrando que nosso movimento – ao contrário das vozes correntes que de alguma forma mantiveram o Brasil numa bolha de isolamento frente ao nosso próprio continente – ocorreu em total simbiose histórica com a independência das outras nações sul-americanas. Aliás, com intensas interações intelectuais com outros líderes e pensadores da nossa América. Uma independência bolivariana, portanto, pra ficar em dia com esse termo tão (mal) utilizado nos dias de hoje.

E em nosso livro não esquecemos os nossos heróis, aqueles personagens sem os quais a história não teria a menor graça. Tiradentes, talvez o maior deles, recebeu a partir de nossas pesquisas novos contornos que a imagem tradicional não permitia conhecer. Acostumados a tê-lo como o grande herói nacional, vitimado pela traição e pela injustiça, pouco refletimos que essa noção foi produto sobretudo dos interesses políticos abrigados depois da adoção da república entre nós. Mostramos por outro lado um Tiradentes pintado com cores muito negativas por historiadores e escritores monarquistas, muito diferente do Mártir da Inconfidência em que foi retratado. E também um herói cheio de dúvidas e incertezas pintado nas telas de artistas plásticos como Aurélio de Figueiredo, por exemplo, muito distante do alferes resoluto e forte, que teria dito a célebre frase “Quantas vidas eu tivesse, tantas as daria em favor do meu país”.

Enfim, esse é o espírito de “Cultura Brasileira na Rede” que eu gostaria de compartilhar com você. Uma visão da história que lança luz sobre as coisas da vida e traz para a nossa atualidade aquilo que o passado nos delega como experiência. Nesse dia em que o Brasil lança foco sobre essa grande relíquia da cultura humana, que é o livro, vai também uma homenagem a todos aqueles que toparam mergulhar nessa verdadeira aventura do espírito que é escrever uma obra. Que todo o seu suor e sua importância sejam um dia reconhecidos à altura pelo país como um todo, o que obviamente traz a questão da prioridade da educação universalizada e junto a ela essa figura fundamental em qualquer grande civilização que é o professor.

*Mais uma vez não poderia deixar de expressar a minha gratidão e reconhecimento pela Appai, que não apenas acreditou (e tem acreditado) no meu trabalho, como também ofereceu todo o apoio para a produção do livro e ainda me propiciou uma bela participação nas atividades realizadas no estande da Associação na Bienal do Livro Rio. Esse dia do livro também é da Appai!


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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