Como o romantismo brasileiro criou a visão que ainda hoje temos do indígena

A imagem que ainda hoje a maior parte das pessoas tem a respeito dos indígenas brasileiros é um fruto de como a presença e os traços dos primeiros habitantes das nossas terras foram abordados pela geração de escritores nacionais ao longo do século XIX.

E ao se falar nesse tema, salta aos olhos a produção literária de José de Alencar, cuja obra indianista é até hoje uma das primeiras referências, seja de caráter, seja de valores, sobre os índios brasileiros, com suas Iracemas, Ubirajaras e Cecis.

A maior parte da crítica literária sobre as obras indianistas do escritor cearense concorda com a ideia de que, mais que mera abordagem de um tipo que seria tido como o símbolo da identidade nacional, a obra de Alencar almeja um projeto nacional, no qual o índio, ainda que idealizado, participa de uma forma muito superior àquela em que seus contemporâneos do século XIX o consideram e tratam.

É importante considerar que, a partir da metade do século XIX, duas grandes linhas de pensamento passam a estruturar o debate entre os intelectuais brasileiros no que se refere ao lugar e à presença do indígena na sociedade. De um lado aqueles que defendem a irrelevância do indígena naquele momento, o que justificaria o seu tratamento como figura secundária da sociedade, alguns mesmo chegando a defender o uso da força para “civilizá-lo” e até a sua inclusão ao lado dos negros como mão de obra escrava.

A outra vertente, influenciada pelo pensamento de José Bonifácio, defendia não só a inclusão gradual do indígena em todas as estruturas sociais e culturais, incluindo a educacional, como também estabelecia como pressuposto a ideia de que eles deviam ser entendidos como vítimas da sociedade brasileira, como herdeira da lusitana, no sentido de que teriam tido suas terras invadidas ao longo do processo colonizador e mesmo depois da independência.

As duas partes da questão, no entanto, se baseiam na mesma noção de que os indígenas naquele momento da vida nacional são uma “raça quase extinta”, como apareceria em muitos textos e discursos do período. Com pouco conhecimento prático de convívio com etnias e fortemente restritos ao ambiente cultural da corte do Rio de Janeiro, muito distantes da realidade rural do Brasil, os intelectuais brasileiros ignoravam a existência de tantos grupos e troncos culturais de povos ancestrais espalhados pelo território nacional, tal como conhecemos hoje.

O projeto de José de Alencar para o lugar do indígena na sociedade brasileira começa a ser vislumbrado quando se analisa os seus romances indianistas. Os mais conhecidos, Iracema e O Guarani, se passam já no século XVII e abordam histórias vividas na relação entre indígenas e europeus, portanto no período em que o mundo indígena brasileiro já havia sido profundamente alterado pela presença da ocupação europeia.

Um traço comum entre os dois romances é o fato de que, mesmo pintados com cores superiores no que se refere a aspectos morais, como coragem e lealdade, por exemplo, são os indígenas que sucumbem no embate com as questões impostas pela colonização portuguesa, sempre entendida pelo autor – e pela generalidade dos intelectuais da época – como superior do ponto de vista intelectual e cultural.

É justamente a superioridade de caráter e o espírito de renúncia demonstrado pelos indígenas (valores fundamentais do cristianismo dos europeus) que é veiculado como a grande virtude, já que se mostram capazes de suportar o sofrimento e até a perda de seu mundo original para viabilizar “algo maior”, que seria a nação.

No caso do outro romance indianista de Alencar, Ubirajara, o plano é um pouco diferente, haja vista que o texto aborda um tempo imemorial, impossível de ser cronologicizado, anterior à chegada dos europeus. O que naturalmente impôs ao autor um esforço de pesquisa e de imaginação que lhe permitisse conceber – na impossibilidade de conhecer as culturas ancestrais de seu tempo – como supostamente viviam e pensavam os primeiros moradores das terras, antes de qualquer contato com outras culturas.

Em vários textos em que falou sobre suas obras Alencar fez referência ao fato de que os muitos cronistas do modo de vida dos nativos, desde os primeiros tempos da chegada dos europeus, foram o seu principal objeto de pesquisa. Foi ali na extensa produção literária sobre o Brasil dos “primeiros tempos” que o escritor cearense hauriu os elementos com que se prontificou a descrever os indígenas nacionais.

Ao criar os nativos, tal qual eles seriam antes de qualquer contato com o europeu, Alencar carrega nas tintas da grandeza cultural, tanto no que se refere ao aspecto racial – descreve os índios como altos, fortes, bravos e íntegros – quanto ao aspecto moral, fazendo coro a certa tradição fundada entre os jesuítas atuantes no Brasil, segundo os quais os nativos da terra já seriam portadores de valores éticos cristãos de forma natural, independente e muito antes de terem conhecido o catecismo cristão pela via do próprio trabalho missionário.

Assim, pode-se concluir que Alencar prega a presença indígena na cultura brasileira como algo positivo e importante na formação da nacionalidade, mas os termos em que isso ocorre supõem o sacrifício do indígena, a raça altiva que se extingue perante a força dos invasores europeus, em prol de um projeto maior, a nação brasileira. Visão em total consonância com o pensamento de seus contemporâneos que creem de fato extintos os grupos indígenas brasileiros. Mas esse nativo – tal como se poderia constatar ao vê-los retratados in natura, isto é, antes do contato com os europeus –, por si só um tipo superior, portador de virtudes e qualidades que o fazem extremamente adequado para a grandeza da nação.

Em outras palavras, era como se o índio contemporâneo de Alencar, desprestigiado, submisso e até ameaçado, ou o que teria restado dele, não fosse mais que uma sombra pálida do que um dia foram seus ancestrais, altivos e fortes. A sua obra teria assim o objetivo de recompor uma ancestralidade que, mesmo derrotada historicamente e levada à extinção, constituiria um fundamento de valor, fadado a viabilizar o grande futuro supostamente reservado à nação brasileira.

Apesar de soar como um intelectual partidário de uma maior integração do indígena de seu tempo na sociedade brasileira, José de Alencar, conhecido pela combatividade nas causas que apoiava, pouco participaria dos muitos debates envolvendo as teses que se digladiavam a respeito do caráter das leis e direitos que envolviam os indígenas. Se por um lado entendia o indígena como portador de valores caros à nação, o cearense mirava, por outro lado, um personagem que não mais podia – ou devia – existir de fato na sociedade, dele não podendo restar senão a memória, aliás boa pra inspirar os contemporâneos.

O índio de Alencar é uma espécie de reserva moral da nação, abstrata e filosófica. Um índio que um dia talvez “descerá de uma estrela colorida e brilhante” qualquer para indicar os rumos a tomar, uma confiança aliás que muitos brasileiros ainda atualmente depositam no que entendem como o brasileiro genuíno. O que sugere que Alencar, tradicionalmente tomado como um intelectual conservador, pode ter criado as bases de uma visão capaz de viabilizar a referência cultural do indígena como um elemento forte e relevante na cultura brasileira.

Leia também: “O olhar visionário de José Bonifácio para a questão indígena no Brasil”. 


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