As escolas dos jesuítas e o princípio da educação no Brasil – Parte I


 

É sabido que a igreja, através principalmente da atividade missionária dos jesuítas no Brasil após a chegada dos portugueses, ficou marcada como uma das principais instituições do mundo ocidental entre nós. Ela está relacionada à instalação das principais inovações que o Velho Mundo nos deixou como legado. Mas provavelmente a obra mais conhecida da Companhia de Jesus no país está ligada à educação formal.

Já em 1553, pouco tempo depois da chegada dos primeiros missionários, um primeiro colégio jesuíta era fundado em Salvador. Nos próximos anos a Ordem manteria a lógica de erguer instituições de ensino sempre que fossem instalados aldeamentos ou núcleos de catequese. Durante os 210 anos em que atuaram por aqui os jesuítas seriam praticamente a única instancia educadora do país. Uma presença que deixou marcas profundas, que até hoje se fazem presentes nas escolas brasileiras.

Apesar de a educação ser um item inserido no discurso da contrarreforma, o letramento das massas é algo que vai ao encontro das necessidades decorrentes da mudança dos rumos de uma sociedade europeia que aos poucos vai se preparando para uma visão mercantil do mundo em substituição aos padrões medievais.

Passa a ser visto como algo lícito às pessoas o direito de serem também consumidoras dos bens produzidos. E o acesso mínimo a conquistas do tempo, como a alfabetização e os livros, era o começo de um processo que mais tarde culminaria na educação como um bem a ser disponibilizado pelo estado.

Assim, ainda no final do século XV o antigo sistema de ensino baseado em preceptores – onde um estudante recebia conhecimento de forma pessoal com o mestre ou preceptor dirigindo as etapas do aprendizado – começa a dar lugar às primeiras escolas organizadas em classes, onde o que é ensinado atinge a todos coletivamente e o conteúdo é algo previamente planejado por pessoas especificamente qualificadas. As massas na verdade são aí preparadas para o ambiente do trabalho generalizado e não mais apenas aquele desenvolvido nos domínios dos feudos ou o realizado nos campos.

Mesmo abrangendo amplos setores da sociedade, essa educação não está voltada para uniformizar culturalmente. Ao contrário, é específica para cada setor levando em conta os papéis a serem desempenhados. Assim, as massas são letradas e cristianizadas principalmente para passarem de bons vassalos a trabalhadores primários, o que significa enxergarem o trabalho como um valor cristão e tanto quanto possível se manterem distantes da ambição, da sede de lucros ou da competitividade.

Ao introduzir o sistema educacional no Brasil os jesuítas não precisaram se afastar muito dessas características. E assim acabaram por colaborar para uma educação que desde o início se manteve indiferente às muitas desigualdades que desde os primeiros tempos da colonização marcaram o país. Os colégios em geral estavam direcionados para a educação dos filhos de europeus que chegavam cada vez mais, trazendo novas iniciativas à promissora colônia, e também para a formação de novos missionários que continuariam a divulgação da fé católica no Brasil.

Os mestiços, índios ou negros eram educados principalmente para o exercício da prática religiosa, o que implicava basicamente a aquisição das primeiras letras. O ensino profissionalizante também foi ministrado pelos jesuítas, inicialmente seguindo as necessidades de desenvolvimento e só mais tarde aparecendo de modo sistemático nos currículos escolares.

A educação de caráter “mais elevado”, voltada para as belas letras ou para as grandes obras literárias, filosóficas ou jurídicas da humanidade, seria reservada para os filhos de nobres, as futuras elites do Brasil. É dos colégios da Companhia de Jesus que sairiam vários dos grandes representantes da intelectualidade brasileira durante o período colonial. Um Vieira, um Gregório de Matos, um Basílio da Gama, um Santa Rita Durão e muitos outros que poderiam ser citados.

Mesmo adaptada aos objetivos educacionais de cada lugar onde os jesuítas exerciam atividade catequética, o ensino da Ordem buscava uma uniformização ao longo do mundo. A “Ratio Studiorum” foi um documento elaborado durante muitos anos e finalizado oficialmente em 1599, que continha toda a filosofia de ensino da Companhia, prescrevendo detalhadamente as funções de cada agente envolvido e a postura de educadores e educandos.

Ali estão firmadas as bases de disciplina e obediência que deviam permanecer nos colégios, desde o método de estudo até as posturas corporais. E é aí também que é enfatizada a rigidez de conteúdos que caracteriza as escolas jesuítas em especial e a educação brasileira como um todo. O que não falta, aliás, é influência do ensino proposto pela Companhia de Jesus no sistema educacional brasileiro.

Os jesuítas são expulsos em 1759, mas apenas nove anos depois, em 1768, é criada a Real Mesa Censória, órgão encarregado de assumir o controle da educação, que apenas em 1771 iniciou suas funções. Só aí decorreram 12 preciosos anos até a propalada mudança de rumos. O desenho final da educação brasileira ainda se estenderia a 1776, quando finalmente a reforma seria considerada finalizada.

O historiador da educação brasileira José Ricardo Pires Almeida sugere que esse atraso da educação no Brasil pós-expulsão dos jesuítas não seria devido apenas à debilidade do Império português, mas também estaria relacionado ao objetivo de “reprimir a expansão do espírito nacionalista que começava a aflorar entre a população”. Durante esse intervalo de tempo, a atividade pedagógica no Brasil sofreria um importante retrocesso.

Com a inativação dos vários colégios jesuítas, muita gente se viu subitamente privada da educação. Os primeiros profissionais de ensino enviados ao Brasil para trabalhar nas novas diretrizes adotadas pela Coroa nem de longe serviram para tapar o buraco deixado pelos professores da Ordem. E, mesmo assim, os que vieram raramente conseguiram implantar uma visão pedagógica diferente da que já havia sido desenvolvida pelos jesuítas. Em número muito inferior, foram facilmente assimilados pela força de um sistema educacional praticado no país havia mais de dois séculos.

Com isso, a educação brasileira, que já era marcada por um caráter de distinção, no qual o ensino variava segundo as classes, papéis sociais e raças, ficou ainda mais deturpada, pois uma parcela ainda maior da população passava ao largo de qualquer tipo de instrução. A possibilidade de particulares abrirem instituições de ensino e a presença de outras ordens católicas à frente da educação nunca chegaram a se aproximar do vigor e da eficiência das escolas jesuítas.

O lamentável resultado é que a prometida educação baseada na ciência e na razão, como reivindicava o pensamento iluminista, jamais chegou a ser implantada a não ser por tentativas isoladas. As instituições de ensino que foram se instalando, sejam particulares, sejam confessionais, mesmo patrocinadas pelo Estado, acabaram refletindo um sistema educacional confuso, desigual e dividido. No final das contas, esses fatores colaboraram para que se enraizassem ainda mais alguns aspectos negativos presentes na visão educacional dos jesuítas.

Até aqui foram expostas as bases históricas da educação brasileira em suas origens. Como se pôde perceber, as muitas idas e vindas nos processos educacionais, depois que os educadores jesuítas não puderam mais atuar no Brasil, dificultaram a que novas propostas de escolarização fossem implantadas.

Consequentemente, a força do ensino ministrado pela Companhia de Jesus se manteve presente mesmo muito tempo depois da expulsão da Ordem. Na segunda parte desse tema vamos abordar mais detalhadamente como são as propostas pedagógicas das escolas jesuíticas e como suas características ainda norteiam a compreensão que nosso país mantém acerca de como deve ser a educação. Até lá.

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Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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