O grande desafio no retorno das aulas presenciais

Pesquisa revela que aulas remotas afastaram os estudantes da aprendizagem por diversos motivos e que a volta presencial precisa ter cuidado redobrado para que o novo ano letivo recupere matéria atrasada sem perder o objetivo de evoluir gradativamente a série


A pandemia talvez tenha sido um dos maiores paralisantes da educação escolar no mundo. Todavia, também coube a ela a maior transformação na adequação e busca pelo uso da metodologia com recursos tecnológicos, seja no ensino on-line, remoto ou na forma híbrida, uma vez que, até então, a efetivação tecnológica não fazia parte da realidade de todos os alunos, pais e professores. Se, por um lado, o retorno às aulas presenciais nos estados brasileiros, a partir do segundo semestre desse ano, resolveu a questão da dificuldade de acesso à internet para muitos alunos, por outro, descobriu-se uma gigantesca lacuna aberta no processo de política educacional em todo o país.

De acordo com o levantamento feito pela ONG Todos pela Educação, com respaldo nos dados do IBGE, na rede municipal e estadual de ensino do Rio de Janeiro, a soma ultrapassa 600 mil alunos que deixaram as salas de aula em 2020 em situação de infrequência, abandono ou evasão escolar pelas mais diversas motivações, que vão desde falta de conexão ou interesse pelos conteúdos escolares até a ausência de sinergia com a metodologia remota, desigualdade e a necessidade imediata de geração de renda para apoiar a família, entre outros.

Um outro dado preocupante levantado pela Unesco mostra que, durante dois terços do ano letivo de 2020, as escolas brasileiras estiveram inoperantes no segmento aula presencial, o que aumenta a responsabilidade das autoridades em resgatar os alunos. Diante desse quadro alarmante, os órgãos responsáveis pela educação dos estudantes e outros que apoiam a educação têm feito um esforço coletivo para ativar o retorno desses alunos às salas de aula.

Com o fim das aulas remotas desde final de outubro de 2021, uma das maiores preocupações dos professores tem sido a constante tarefa de relembrar conteúdo, já que determinados estudantes não conseguem recordar o que estudaram desde meados de 2020. “É inevitável esse acontecimento, uma vez que os alunos não tiveram uma linearidade de aprendizagem satisfatória, porque uns tinham internet em casa, outros não. Apesar da Seeduc do Rio ter disponibilizado conteúdo impresso aos que não tinham acesso ao sistema, estudar sozinho e ser orientado às escuras – pois nos comunicávamos semanalmente por bilhetes – não tem o mesmo impacto”, enfatiza a professora da rede estadual Isabel Marinho.

A professora também fala sobre o papel fundamental da família neste processo de ensino. “É preciso ressaltar também que tivemos bastante a presença dos pais, pois sem eles incentivando tudo ficaria pior. Sabemos que apenas estar conectado na aula on-line não é suficiente, é preciso participar, interagir. Sem esse apoio, alguns alunos entram no sistema, mas estão fazendo outras atividades”, revela Isabel.

 

Medidas que podem ajudar a reduzir o abandono escolar

Para a professora Carla Augusta, essas ações, juntamente com o esforço de toda a comunidade escolar, podem sim surtir um efeito reverso. “Todavia, sabemos que o desafio pós-pandemia será tão potente quanto foi a chegada desse período há pouco mais de dois anos”, garante.

De acordo com a publicação da pesquisa realizada pelo Anuário Brasileiro da Educação Básica 2021, o contato com familiares pode ser uma ação efetiva para a redução do abandono, bem como ir à residência do estudante e informar ao Conselho Tutelar. Conheça também outros bons exemplos de estratégias para prevenir a evasão escolar no Observatório da Educação.

 

Panorama nacional

Recentemente, a comissão externa da Câmara que acompanha os trabalhos do MEC realizou audiência virtual com representantes dos secretários estaduais de Educação, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e da Fundação Roberto Marinho, para discutir a urgência de ações efetivas no combate à exclusão, ao abandono da escola. Segundo dados da Unicef, a evasão escolar no Brasil atinge 5 milhões de alunos. Durante a pandemia da Covid-19, esses números aumentaram em 5% entre os alunos do Ensino Fundamental e 10% no Ensino Médio. Para os que ainda estão matriculados, a dificuldade foi de acesso, com 4 milhões de estudantes sem conectividade.

O coordenador da comissão, deputado Felipe Rigoni, afirmou que, após dois anos de pandemia, e com a volta gradual das escolas, é preciso pensar formas de trazer de volta esses alunos e recuperar o aprendizado que ficou prejudicado por falta de acesso. “A gente tem uma tarefa muito séria, que é reconduzir esses estudantes, acolhê-los de maneira adequada nas escolas e promover uma grande recuperação da aprendizagem”, enfatizou Rigoni.

Para entender melhor essa equação negativa, é necessário lembrar que há dois anos, em 2019, já havia mais de 1 milhão de crianças e jovens, entre 4 e 17 anos, fora da escola. Com o crescimento populacional, a faixa de 6 a 17 anos nessa situação saltou para 1,5 milhão.

A chegada da pandemia alterou o processo de ensino-aprendizagem que já não era tão estável, de acordo com os índices que medem a aprendizagem no Brasil. Soma-se a este cenário o fechamento das escolas, a interrupção das aulas presenciais, a inserção repentina do uso dos recursos tecnológicos, a pouca experiência de utilização eficiente dos recursos tecnológicos disponíveis em virtude do desconhecimento técnico e prático-pedagógico das ferramentas, sem falar na dificuldade de acesso à internet.

 

É hora de virar o jogo

De volta às aulas presenciais, a professora do Ensino Médio de cinco escolas de Guaratiba, Kátia Fabiane Lima, diz que o retorno tem sido intenso e com dedicação total para sanar as dúvidas dos alunos. “A gente volta com o coração entusiasmado porque sabemos que o futuro dessas crianças está nas nossas mãos. A verdade é que só vamos conseguir mensurar os efeitos da pandemia na educação quando a desigualdade ficar patente nas pesquisas futuras. Muitos estudantes sentirão o impacto ao se deparar com um vestibular”, preconiza a educadora. “Tem alunos que eu só vi no último dia de aula presencial, lá em março de 2020. Muitos não voltaram! Alguns, soube que tiveram que ajudar os pais em casa. Agora nosso maior desafio é reconquistar esses estudantes, identificá-los e entender por que desistiram de estudar”, enfatiza Kátia.

Criado com o objetivo de apoiar os municípios na identificação das crianças e dos adolescentes que estão fora da escola, ajudando-os a trazê-los de volta aos estudos, a plataforma gratuita Busca Ativa Escolar foi desenvolvida pelo Unicef em parceria com Undime, Congemas e Conasems. Mais de 22 estados, incluindo o Rio de Janeiro, já aderiram ao programa que permite que as pessoas enviem pela internet informações sobre crianças e adolescentes nessa situação, por meio de aplicativo ou por SMS. Do outro lado, uma equipe intersetorial local toma as medidas necessárias para a matrícula, permanência e aprendizagem desses alunos.

Além dessa plataforma, a Secretaria Municipal de Educação (SME) trabalha com outras ações de buscas ativas que estão sendo implementadas com o apoio de outras secretarias, como a da saúde e a da assistência social, além da mobilização de toda a comunidade escolar. Uma estratégia semelhante também vem sendo colocada em prática pela Seeduc-RJ, com o intuito de resgatar alunos com baixa frequência e/ou nota.

 

Busca Ativa já começa a apresentar resultados

Uma força tarefa realizada pelo núcleo central da Secretaria Municipal de Educação, juntamente com as 11 Coordenadorias Regionais de Educação (CRE) e as mais de 1.500 unidades escolares do município, já conseguiram resgatar mais de 11 mil alunos, entre crianças e adolescentes, que estavam longe da escola.

O secretário municipal de Educação do Rio, Renan Ferreirinha, assegurou que esse é um dos principais objetivos da pasta. “Lugar de criança é na escola. E um dos nossos principais esforços é buscar as crianças e os adolescentes que pararam de estudar. Sabemos que a pandemia aumentou a evasão escolar e, por isso, intensificamos o trabalho de busca ativa”, relata.

De acordo com a SME, para que haja êxito nesse retorno, várias ações estão sendo implementadas, inclusive campanhas no aplicativo TikTok, contato por redes sociais, além da articulação com os representantes do Conselho Escola Comunidade (CEC) e com os serviços de saúde e assistência social nos territórios para buscar crianças e adolescentes que estejam fora da escola ou em risco de abandono escolar.

 

Prioridade: agora é a hora de reverter o alto índice de abandono às salas de aula

Em 2020, trouxemos uma matéria na Revista Appai Educar que abordava as incertezas relacionadas à educação, isolamento social, ensino remoto e as dificuldades encontradas nessa mudança brusca do cotidiano estudantil. Para isso, conversamos com professores, alunos, pais e especialistas que opinaram sobre o assunto e trouxeram suas experiências e perspectivas sobre o futuro.

Um desses entrevistados foi Eduardo Madeiro, professor de Artes Visuais e História, que leciona em três instituições em Nova Iguaçu. Ao ser questionado sobre o futuro da educação em 2021, ele afirmou que seria um ano de grandes transformações e mudanças com a educação híbrida. “Estaremos cada vez mais nos reinventando, buscando nos atualizar nas novas ferramentas tecnológicas. Ficou claro que tivemos um salto na educação, e o propósito de ser inovador/criativo foi uma das habilidades mais trabalhadas entre nós, os professores, em 2020. Creio que os pais/familiares conseguiram sentir na pele o nosso dia a dia, que foi bastante desafiador e desgastante”.

Sobre o retorno das aulas presenciais em 2021, ele conta que alguns aspectos foram visíveis de forma geral nas três instituições em que leciona. “A retomada das aulas em escolas privadas já havia ocorrido no início do ano, aqui no município de Nova Iguaçu. Esse retorno foi novamente bem desafiador, pois em 2020 tivemos que nos adaptar ao ensino 100% on-line e agora com a educação híbrida. Esse retorno foi pautado de muito receio perante toda a equipe na adequação dessa nova forma de ensinar”, afirma.

O educador levanta ainda algumas questões relacionadas a esse retorno. Como, por exemplo, o modo com que esse aluno que estava em casa há mais de um ano, sem a rotina educacional, iria se comportar perante esses novos processos e como avaliar a nova forma de se enxergar seu rendimento escolar? Outro ponto que ele destacou foram os desafios dos educadores em se manter estável com a saúde física e mental.

 

O retorno das aulas presenciais

Kariny Mota é mãe de duas meninas, Ana Carolina, de 7 anos, e Ana Clara, de 2. Ela conta que, apesar do sentimento ter ficado bem dividido sobre voltar ou não às aulas presenciais, ela preferiu que as filhas retornassem para a escola esse ano. “Quando a pandemia começou, a minha filha mais velha não se interessava pelas aulas on-line, teve muita dificuldade em ter atenção. Acredito também que a qualidade do ensino a distância para crianças da Educação Infantil não é a mesma que acontece no presencial”, garante.

Segundo ela, quando reabriram para as aulas híbridas ela sentiu uma diferença enorme entre a atividade presencial e a remota. “Tanto na qualidade do ensino, como na questão da tecnologia, as coisas dependem de uma boa internet, um computador com câmera, toda uma estrutura que nem toda criança tem. Sem contar a questão da alfabetização, aprender a ler pelo celular ou computador não é fácil”, relata.

A mãe das meninas afirma que percebeu o quanto a filha mais velha foi prejudicada em relação à aprendizagem. “Com a correria para aprender o que perdeu e o atraso da matéria, tenho certeza que ela e muitas crianças apresentaram dificuldade com a alfabetização e a socialização. Esse retorno é muito importante, mas precisamos seguir à risca os protocolos de segurança, as orientações e dar muito exemplo. Esse retorno será muito importante para todos, principalmente para a Educação Infantil. A alfabetização presencial faz toda a diferença”, garante Kariny.

A professora Bárbara Fernandes, que também participou da matéria que fizemos em 2020, conta que na rede municipal a evasão ocorre mais no EJA. “Um fator que tem me chamado atenção principalmente em relação aos meus alunos em Xerém é que eles desistiram de ir à escola por conta das linhas de ônibus que estão muito reduzidas. Eles têm dificuldade em pegar condução tanto para ir quanto para voltar, chegam a esperar duas horas no ponto. Acredito que a evasão dos jovens também se deu pelo fato de eles se inserirem no mercado de trabalho para ajudar a família durante a pandemia ou ter feito uma terceirização das tarefas domésticas com os familiares”, pontua a educadora.

O professor Eduardo Madeiro conta que algumas famílias preferiram manter o ensino a distância, e os que participaram de forma híbrida, no início, acompanharam de forma tímida. “A falta de uma rotina escolar presencial foi um dos fatores que mais causou um cansaço repetitivo neles. Seus aparelhos telefônicos e computadores agora tinham a função de ser uma ferramenta voltada para os estudos, alguns não compreenderam a necessidade de se pensar fora das distrações das mídias sociais e jogos. E fica notório o afastamento de alunos que precisavam de uma maior atenção dos professores”, explica.

Para ele, a aproximação com esses estudantes se faz necessária no seu aprendizado. “Esse afastamento foi um dos grandes motivos de evasão escolar que percebi nas três instituições nas quais leciono. Vale aqui uma ressalva para destacar o trabalho socioemocional realizado no Instituto Menino Jesus por profissionais da educação com formação em psicologia. Foi de grande soma para adequação desses alunos que necessitavam desse acompanhamento mais assistido”, relata Eduardo.

 

Os prejuízos para a aprendizagem com a evasão escolar

A doutora em Ciências Sociais e especialista em sociologia urbana Sara Zarucki afirma que os prejuízos da evasão escolar são muitos. “Acredito que o principal deles é a socialização. A escola possui essa importância por ser o espaço em que a criança assimila coisas além da própria casa, como valores, culturas e por isso aprende a lidar com a diversidade que, somada ao ato de aprender a conviver com o outro, são fundamentais para o ambiente escolar e para a formação do estudante”, afirma.

 

Como a família e a escola podem ajudar nesse retorno?

Sara Zarucki explica que a palavra-chave nesse processo de integração entre a família e a escola é o diálogo. Para ela, os familiares precisam entender a escola como uma parceira no desenvolvimento dos filhos e não como a única agente responsável pela educação. Por isso, esse retorno precisa dar ao educando uma segurança não somente do ponto de vista da saúde, mas também do social e emocional.

Muitos alunos tiveram déficit de aprendizagem durante a pandemia. Sem contar os que também perderam seus familiares e/ou amigos. Nesses casos, a especialista ressalta que o professor é figura muito importante no processo, mas não pode ser o único. “Ter toda a estrutura escolar como suporte é essencial nesse retorno. Mas, do ponto de vista prático, é importante falarmos sobre o luto, sobre a morte e sobre a própria vida. Não podemos tratar esses temas como tabus na sala de aula. Quanto aos alunos que não participaram das aulas, entendo que muitas das vezes a culpa não é deles, e por isso o professor não deve ficar insistindo no que o educando perdeu ou deixou de aprender do ponto de vista curricular, mas sim trazer as contribuições de aprendizagem desse estudante para a sala de aula”, pontua.

De acordo com Sara, o ideal é construir um novo processo de aprendizagem que envolva a autoestima e mostre que é possível, sim, continuar na escola mesmo tendo em vista esse período de ruptura. “Gostaria de pedir aos meus colegas professores que entendam que muitos dos alunos que vão retornar as nossas salas de aula estão entre aqueles que precisam reaprender não somente o conhecimento curricular, mas também a lidar com os colegas, com as regras escolares e com novos saberes adquiridos na pandemia. Tenhamos paciência, empatia para que não somente os estudantes tenham um retorno saudável, mas para que nós, trabalhadores da educação, também nos sintamos respeitados como profissionais e como pessoas, tendo em vista que todos nós estamos nesse processo”, afirma a especialista.

A educadora Bárbara Fernandes acredita que a empatia seja o fator principal. “Vejo muitos colegas julgando alunos sem ao menos pensar na realidade deles. Reclamando que as tarefas que entregam estão malfeitas ou incompletas. É o que aquele estudante pode oferecer sem o apoio presencial do professor. O que para a gente é fácil, para o aluno, na realidade que se apresenta, não é. Só o fato de ele mostrar vontade de fazer a tarefa em meio ao contexto em que ainda estamos já é válido”, garante.

Bárbara afirma ainda que o professor tem que se permitir ser acessível. “A gente tem que estar presente e também se colocar no lugar do aluno compreendendo as dificuldades por que a maioria passa, principalmente na rede pública. Se muitos colegas apresentam dificuldades em mexer na plataforma ou mesmo nas mídias, isso também se reflete no alunado que por vezes não tem nenhum meio de se comunicar e o pouco que ele entrega é o máximo que conseguiu. Basta termos a reflexão: foi o aluno que se evadiu da escola ou a escola que o abandonou?”, indaga a educadora.

Para Eduardo Madeiro, quando falamos da adaptação das escolas privadas em comparação às públicas, fica nítida uma discrepância de como os alunos dessas últimas foram prejudicados. “Se existiram relatos de estudantes de instituições particulares com dificuldades de acesso à internet, imagina nas redes de ensino dos estados e municípios, onde grande parte das famílias mal tinha condições de manter as suas necessidades básicas. Um caminho saudável para esse retorno é criar um ambiente agradável na escola. Pode ser um início de aproximação com esses alunos que já se encontravam por quase dois anos fora do espaço escolar”, pontua.


Por Antônia Lúcia, Jéssica Almeida e Richard Günter
Fotos: Banco de imagens gratuitas do Freepik.
Fontes: Agência Câmara dos Deputados | Agência Brasil | CNN Brasil | Cenpec | Unicef

*Sara Zarucki é doutora e mestra em Ciências Sociais, especialista em Sociologia Urbana, Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais. Além disso, é pesquisadora no Laboratório de Pesquisas e Estudos em Educação Superior (Lepes) e no Ciências Sociais e Educação (ICS). Publicou diversos artigos e capítulos de livros sobre a relação entre a sociologia da educação e o ensino de sociologia. Além da pesquisa sobre a formação de professores de ciências sociais e o mercado de trabalho do cientista social. E-mail para contato: sara.zarucki@gmail.com.

 


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