Afroetnomatemática


Uma nova proposta tida como imprescindível para uma boa prática docente é a perspectiva do professor reflexivo. Nela, o educador deve ter um espírito crítico e investigativo, que o conduza a se apropriar dos saberes acumulados pela humanidade, criando referenciais sócio-históricos que contribuam com a construção das identidades, autoconhecimento e autoestima dos educandos. A equipe pedagógica da Escola Municipal Professora Leocádia Torres, em Barra de Guaratiba, Zona Oeste do Rio, colocou essa tese em prática ao desenvolver o projeto Afroetnomatemática, além de números e letras. O projeto evidenciou as contribuições africanas para a evolução da Matemática sob uma perspectiva cultural e abordou o etnoconhecimento como um processo de construção de saberes. A escola atende alunos do 3º ao 9º ano do Ensino Fundamental, distribuídos em 28 turmas.

De acordo com o professor de Matemática Cleiton Resplande, a ideia de articular a disciplina à cultura afro surgiu, inicialmente, com uma turma de 8º e outra de 9º ano e partiu da percepção da grande incidência de preconceito que ainda existe e que poderia prejudicar o aprendizado do estudante. “Foi quando eu comecei a dar ênfase à importância do continente africano para a evolução da Matemática, pois costumamos colocar todo o crédito aos europeus, mas a verdade é que eles aprenderam com os africanos. O interesse dos alunos aumentou de tal forma que decidimos convidar os professores das demais matérias para transformar essa proposta em um projeto interdisciplinar”, relembra.

Para embasar seus argumentos, o professor Cleiton cita os primeiros matemáticos, como Tales de Mileto e Pitágoras, que desenvolveram suas teorias e contribuições depois de longas viagens à região da Babilônia, Ásia Menor (Turquia) e norte da África, principalmente o Egito. Ali, eles se impressionaram com as pirâmides, a avançada tecnologia agronômica, a biblioteca de Alexandria e os aprofundados estudos de Astronomia, Geometria, Trigonometria e Filosofia.

Para que o projeto pudesse alcançar as metas propostas, a equipe escolar traçou alguns objetivos específicos: provocar no aluno percepções geométricas na arte afro; ampliar o olhar a respeito da evolução da Matemática numa perspectiva histórica e social; estimular o pensamento independente, a criatividade e a capacidade de resolver problemas através de jogos africanos; desenvolver habilidades de estimar, criar estratégias e calcular, além de proporcionar a aquisição de novos conhecimentos através do lúdico no ensino dessa disciplina. Durante o processo de desenvolvimento do projeto, os alunos assistiram a palestras, realizaram atividades com desafios matemáticos e participaram de oficinas. No dia estabelecido para a culminância, as muitas atividades apresentadas em vários ambientes da escola deram a dimensão exata do quanto o tema foi produtivo.

Alunos do 9º ano promoveram oficinas de jogos africanos. Os visitantes tiveram a oportunidade de aprender as regras de várias competições de tabuleiro com origem no continente, como Mancala, Shisima, Chroma 4, Yoté e Senet. Este último é um dos mais antigos divertimentos do gênero conhecidos e remonta ao Egito da Antiguidade, cerca de 4.000 anos atrás. Outra turma da mesma série apresentou oficinas de maquiagem e tranças, com o auxílio da professora de Matemática Andréa Rosa. E para quem questionar o que isso tem a ver com Matemática, a resposta é: tudo. “Ao abordar as tranças geométricas, falamos dos fractais e sequências numéricas. Quando trabalhamos com as pinturas tribais, a compreensão sobre as formas geométricas também é fundamental”, explica a professora.

Os alunos João Vitor Cambolim e Kaio Marques, ambos do 9º ano, ficaram fascinados com o que aprenderam durante as etapas do projeto: “Tínhamos uma visão diferente do continente e, à medida que pesquisávamos, descobrimos tantas coisas que modificaram radicalmente o nosso pensamento. Nunca havíamos reparado na simetria e nos traços geométricos das pinturas nos corpos e dos penteados. O artesanato, as esculturas, a arquitetura, enfim… estamos extasiados com tanto conhecimento”, exclamaram os dois.

Legenda: Através das atividades lúdicas, os estudantes fortaleceram o pensamento crítico, reconhecendo e respeitando outras culturas

A professora de História, Alexandra Nanan, trabalhou com alunos do 7º ano a inserção das máscaras africanas. À medida que o projeto transcorria, eles aprendiam o que esses adereços significam na cultura afro e qual a sua importância em diferentes cerimônias. Já os estudantes do 8º ano reciclaram caixas de leite para construírem pirâmides, usando a métrica. As alunas Maria Luiza Gois e Samires Oliveira explicaram aos visitantes conhecimentos sobre a geometria espacial contidos nas pirâmides, realizaram atividades de montagem de figuras geométricas e propuseram desafios matemáticos.

O professor de Geografia, André Machado, conta como abordou o projeto em sua disciplina: “Trabalhamos com os alunos tanto as questões geográficas do continente, quanto os itens culturais, buscando desconstruir os mitos sobre ele. Primeiro, é preciso conhecer as especificidades de cada país com suas características, culturas e religiões. Depois, desconstruímos o mito egocêntrico de que a Europa é melhor que a África. Em seguida, na etapa de reconstrução, estimulei o aluno a desenhar o continente que eles haviam descoberto. As figuras revelaram uma África mais valorizada e empoderada”, afirma.

Legenda: O projeto evidenciou as contribuições africanas para a evolução da Matemática sob uma perspectiva cultural

Alunos de 6º e 7º anos, orientados pela professora Sandra Franchin, abordaram a cultura árabe, destacando a obra de Malba Tahan, pseudônimo do educador brasileiro Júlio de Melo e Sousa que, ao longo de sua vida, reuniu o saber matemático e os contos árabes em extraordinárias aventuras literárias, apresentando desafios e problemas a cada história. Para retratar o personagem, os alunos montaram uma tenda árabe e apresentaram um esquete teatral baseado em um de seus contos matemáticos. “Em algum momento da história essas duas culturas (africana e árabe) estiveram presentes na evolução da Matemática. Os algarismos arábicos, também chamados de indo-arábicos, foram criados e desenvolvidos pela civilização do Vale do Indo (localização atual do Paquistão). Este sistema de numeração é considerado um dos avanços mais significativos na área da Matemática”, justifica a professora.

A turma também enfocou a origem do Tangram, antigo jogo chinês, que consiste na formação de figuras e desenhos por meio de sete peças (5 triângulos, 1 quadrado e 1 paralelogramo). As professoras Karin Lobão, de Língua Portuguesa; Angelita Arruda, da Sala de Leitura; Flávia Sendas, de Educação Física; e Sílvia Vasconcellos, de Língua Inglesa, também construíram pontes ligando o projeto ao conteúdo de suas disciplinas. A professora Elaine Fonseca trabalhou com as turmas de 3º, 4º e 5º anos as brincadeiras cantadas na África.

A coordenadora pedagógica da escola, Valéria Rodrigues Maia, comemora o fato de os estudantes terem demonstrado tanto entusiasmo com o projeto: “A partir de atividades lúdicas, eles construíram saberes que contribuirão para a formação de um cidadão que conhece e respeita outras culturas. Esse é o grande legado”. A diretora-geral Maria da Penha Rodrigues Ribeiro complementa: “O projeto começou com a Matemática, mas se expandiu por todas as disciplinas. Assim é a escola viva. Você trabalha o aluno como um todo. É gratificante ver em cada um deles a alegria de estudar, de aprender, de estar na escola”.


Por Tony Carvalho
Escola Municipal Professora Leocádia Torres
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