A religião de Alá e a intolerância – A história do Islamismo


Quando atualmente ouvimos falar nos noticiários sobre nações árabe-islâmicas, tendemos a achar que esses dois termos constituem uma só coisa, ou são quase sinônimos. A generalização que se tornou natural na hora de se referir a essa importante matriz cultural tem suas origens em circunstâncias históricas, que em dado momento atrelaram muito profundamente a cultura árabe e a religião islâmica. Uma compreensão mais exata do que representam essas duas ideias, no entanto, vai contribuir para um entendimento mais abrangente das situações geopolíticas que hoje envolvem esse grupo cultural.

Em primeiro lugar é preciso considerar que por árabes se denomina uma série de tribos que habitavam desde aproximadamente 1.200 a. C. partes da chamada Península Arábica, região marcada por grandes porções de terras desérticas. A maior parte dos povos, por viverem em ecossistema nada propício ao cultivo agrícola ou à criação de animais, adotaria um estilo de vida nômade, constituindo as famosas caravanas que circulavam pelo deserto atrás de víveres ou mercanciando bens, em geral artesanais. Essas tribos acabavam se encontrando em alguns poucos pontos da região desértica onde era possível a existência de cidades um pouco mais desenvolvidas por se situarem nas proximidades de oásis.

Alguns desses agrupamentos conseguiam a proeza de até se transformarem em grandes centros, portadores de estrutura pouco comum para aquelas regiões e por isso funcionando como importantes entrepostos comerciais e de abastecimento para uma infinidade de povos andarilhos. Uma dessas cidades é a famosa Sabá, que acabaria sendo de grande importância para tradições como a hebraica e mais recentemente a da religiosidade Rastafári, da Jamaica. Uma outra relevante característica dessas localidades é que serviam também de centro de peregrinação religiosa, pois os inúmeros povos que lá aportavam em suas viagens aproveitavam a estada para ficar em dia com seus deuses.

O contato das tribos árabes com outras culturas e credos ao longo de séculos de convivência criaria ali uma visão intensamente sincrética, formada no intercâmbio de ideias e visões religiosas. Numa dessas cidades se desenvolveria um dos maiores exemplos de convivência pacífica entre culturas e religiões do mundo antigo. Meca, ao ocidente da Península Arábica, ficaria marcada por abrigar caravanas de povos viajantes e seus cultos religiosos (estimados em mais de 300 por estudiosos). Lá inclusive sendo erguido um verdadeiro monumento à diversidade de crenças, uma pedra negra em formato cúbico em torno da qual as inúmeras divindades eram reverenciadas, a Caaba, um nome de origem árabe.

Nesse momento o leitor que já tenha tomado contato mais íntimo com esse tema, ao ouvir nomes como Meca e Caaba, já deve ter sido remetido à cultura do Islã. De fato, o quadro acima descrito começa a tomar um novo rumo histórico a partir do século VII da era cristã, quando um condutor de caravanas chega à cidade propondo uma visão diferente daquela praticada até então. Maomé era natural de Meca, mas em suas viagens toma contato com as duas grandes religiões monoteístas de então, o cristianismo e o judaísmo. Seduzido pela ideia da existência de um único deus, começa a pregar para os povos politeístas que se reúnem na cidade, o que resultaria em confrontos com interesses comerciais há muitos séculos ali instalados em função da diversidade de crenças.

Expulso de sua cidade natal, Maomé vai viver em outra localidade, Yatrebe, onde intensifica sua atividade como religioso e defensor da visão monoteísta. A tradição muçulmana dá conta de que nesse período é que teria se dado sua experiência epifânica em que teria tido contato como o anjo Gabriel, aquele mesmo da tradição cristã, responsável por lhe transmitir o conteúdo do que seria o livro fundamental do islamismo, o Corão. Além disso, conseguiu organizar ali a primeira comunidade regida pelas ideias por ele desenvolvidas, instituir um estado teocrático e se fortalecer belicamente para levar adiante o que denominaria de Jihad, ou a Guerra Santa, com a qual acabaria por levar (inclusive por imposição) suas crenças a vários povos até então politeístas.

É quando triunfa em sua investida contra a cidade que o expulsara, que Maomé promove a apropriação para a cultura muçulmana das atividades praticadas há vários séculos em Meca, que assim passa a ser considerada a cidade sagrada do Islã, enquanto a Caaba deixava de ser um símbolo do sincretismo religioso cultivado ao longo de mais de um milênio para representar um dos maiores locais de peregrinação religiosa do mundo. Ali é marcada a ascensão de Maomé e a solidificação de sua visão baseada no deus único. Por outro lado, Yatrebe, a cidade que o acolheria, acabaria recebendo o nome de Medina, a “Cidade do Profeta”, e sua chegada a ela se tornaria uma data de grande importância para a tradição islâmica, marcando o início do calendário para os muçulmanos, a Hégira.

Afirmando-se com força não apenas religiosa, mas civilizacional e militar, os povos de orientação islâmica, quase todos de ascendência árabe, se lançariam a outras aventuras expansionistas. E talvez a mais importante delas tenha sido a invasão do continente europeu, por volta dos séculos VII e VIII. Ali, povos orientados pela religião muçulmana teriam acesso a muitas obras da Antiguidade greco-romana há muito tempo esquecidas pela Europa cristã. Foram filósofos e estudiosos islâmicos que redescobriram, traduziram, comentaram e ofereceram aos pensadores católicos os textos de expoentes do que viria a ser considerada a filosofia clássica, como Sócrates, Platão e Aristóteles. Essas “novas” contribuições propiciadas pelos invasores muçulmanos acabariam, como se sabe, a alterar a face do cristianismo no ocidente e, mais que isso, ajudariam a solidificar a própria identidade europeia, baseada na visão do pensamento grego como “berço da civilização ocidental”.

Se por um lado a ascensão do monoteísmo de Maomé serviu para interromper uma tradição milenar de sincretismo e diversidade religiosa cultivada sobretudo pelos povos de ascendência árabe, por outro, não se pode negar que a cultura do Islã soube preservar, das tribos que conquistaram, o sentido de liberdade e abertura cultural, que permitiu que, mesmo em terras estranhas, tesouros do conhecimento antigo, como os presentes nos textos e tratados gregos e romanos, fossem recuperados.

Mais que isso, realizassem a função renovadora que mais tarde transformaria uma Europa cristã bélica e intolerante num reservatório de ideias e pensamentos que ainda hoje constituem um acervo fundamental do conhecimento, um patrimônio da espécie humana. É por aí que se pode perceber que o caráter intolerante e belicoso que modernamente se atribui a nações islâmicas em noticiários sobre a geopolítica atual, longe de constituir um traço de caráter dessa cultura, é muito mais fruto de um momento histórico como o que se vive hoje. E nada impede que venha a ser sucedido por outro em que o sentido de diversidade, respeito e abertura para visões de mundo alheias venha novamente a fazer a diferença num sentido renovador.

Leia também: “Como a ascendência árabe ajudaria a construir adiversidade brasileira”.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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