A imprensa “negra” e a Abolição


Não é absurdo dizer que a imprensa foi um dos campos em que o movimento abolicionista no Brasil mais se destacou, tanto por sua condição naquele momento de meio principal de propagação das questões e assuntos nacionais, quanto por abrigar entre suas fileiras algumas das cabeças mais prestigiosas da nação, que se engajariam com muita intensidade do movimento.

Já nos anos mais próximos a 1888, a extinção da escravidão entre nós se tornaria quase uma unanimidade nacional, sendo dessa forma assunto obrigatório nas manchetes dos principais jornais do país e tema básico adotado pelos articulistas e formadores de opinião.

Mas um aspecto pouco divulgado dessa faceta jornalística do movimento abolicionista brasileiro foi a atuação de periódicos de menor expressão, que acabariam sendo identificados pela denominação genérica de “imprensa negra”. Essas publicações seriam fundamentais sobretudo na conscientização dos próprios afrodescendentes quanto ao momento vivido, principalmente porque tendiam a expor certas visões a partir da perspectiva dos próprios possíveis beneficiários da abolição, o que normalmente não acontecia em publicações de maior prestígio, que também ofereciam espaço para as opiniões contrárias.

Um dos jornais que muito se destacaram nessa tarefa foi “O Asteróide”. Fundado em 1887 no interior da Bahia, desempenharia importante papel num momento de grandes conflitos com elites locais avessas à decretação da lei abolicionista. Voltado basicamente para um público das classes média e alta (que tendiam a adotar a perspectiva dos grandes proprietários rurais), cuja opinião precisava ser construída visando eventuais modificações na sociedade em virtude dos “novos tempos” que adviriam a partir de um país sem escravidão.

O periódico se utilizava de estratégias discursivas e narrativas voltadas para a “sensibilização” desse público, como por exemplo a adoção de um discurso que se aproximaria do religioso, direcionado sobretudo às mulheres, menos letradas que os homens, mas mais próximas de uma textualidade como a empregada pela religião. Algumas de suas publicações procuravam sublinhar o viés de barbárie e violência presente no cotidiano escravista como um índice de atraso social.

“O Homem”, editado no Recife a partir de 1876, se notabilizaria por abrigar em suas páginas debates e opiniões acerca das supostas diferenças raciais, caracterizando um viés mais científico e filosófico. Um outro fator importante dessa publicação era o fato de estar sintonizado com a causa afrodescendente em outras partes da América, inclusive fazendo muitas referências ao modo como a questão se articulava, por exemplo, nos Estados Unidos, e não esquecendo de mencionar a sempre simbólica rebelião de escravos que redundaria na independência do Haiti. “O Homem” ainda tem o mérito de ter abrigado em suas edições intelectuais que também se destacariam como importantes figuras do meio literário brasileiro e de grande contribuição para essa questão, como um Tobias Barreto, por exemplo.

Publicado em torno de 1884 em Porto Alegre, “O Athleta” não se apresenta como um órgão exclusivamente abolicionista, também refletindo a visão das elites e classes médias daquela então província a respeito da escravidão, que ainda é mantida em nível nacional, mas considerada extinta no Rio Grande do Sul. Tal como aconteceu em outras regiões do país, a abolição foi explorada como um fator de dignificação cultural, no caso gaúcho servindo para alimentar o suposto caráter “libertário” do povo. Por isso, o periódico, que dá espaço também a uma considerável produção literária, se notabilizaria por apresentar posições por vezes contraditórias a respeito do lugar cultural do afrodescendente.

Já “O Homem de côr” foi um dos jornais mais conhecidos e combativos do país. Editado no Rio de Janeiro por Paula Brito ficaria conhecido principalmente pela sua postura “militante”, que o levaria a adotar ações pragmáticas, como abrir as portas para escritores e redatores afrodescendentes e até oferecer espaço para reivindicações populares, como a causa proletária.

Também se configurou como uma publicação importante na medida em que ajudaria a combater o pensamento das classes dominantes, se aliando muitas vezes a uma imprensa influenciada pela presença de imigrantes que aqui passaram a atuar trazendo alguns pontos de vistas diferenciados. Tais características acabariam por fazer do periódico uma das tribunas jornalísticas mais atuantes e firmes durante o abolicionismo nas letras. Apesar de muitas vezes acusado de pregar o “branqueamento” como forma de inserção social do afrodescendente, também procurou ser uma publicação voltada para o esclarecimento da população negra, mesmo sendo baixo o índice de analfabetismo nesse segmento.

Não se poderia também esquecer de “O Libertador”, periódico fundado em 1880 como órgão de imprensa da Sociedade Libertadora Cearense. Ficaria famoso por ser um dos principais propagadores de uma visão que caracterizaria o abolicionismo no Ceará: a ideia de que a libertação dos escravos naquela província funcionava como uma referência de construção de uma cultura elevada, com que se pretendia marcar a personalidade local.

Por isso, o periódico se notabiliza por manter um discurso abolicionista como um processo “civilizado” e natural, o que o fez abrigar em suas páginas uma propaganda abolicionista fixada, por exemplo, em eventos sociais que serviam para promover a decretação de extinção da mão de obra cativa nas diversas cidades cearenses. Por outro lado tendia a evitar as notícias de ações abolicionistas que sugerissem violência ou noticiassem rebeliões de escravos ou de abertura de senzalas. Se identifica com a formação de um discurso que colaboraria para o predomínio de uma narrativa baseada nos valores já abrigados pelas elites dirigentes, o que muito influenciaria na situação futura dos que alcançavam a liberdade.

A “imprensa negra” foi aos poucos perdendo a força depois que o processo abolicionista teve seu desfecho com a assinatura da Lei Áurea. Ao contrário do que deveria ocorrer, as questões referentes à integração dos recém-libertos na vida nacional foram debatidas com muito menos intensidade pelos intelectuais, mesmo pelos que mais efusivamente atuaram como porta-vozes da grande causa da extinção da escravidão. Com poucos recursos e não podendo contar com a fidelidade de um público-leitor – que seriam obviamente os próprios afrodescendentes se nesse grupo não predominasse o analfabetismo – grande parte desses periódicos sucumbiria ao ostracismo em que as questões ligadas ao afrodescendente no Brasil ficariam relegadas.

*Como ilustrações do texto, Ophra Winfrey, jornalistas consagrada. No passado, a imprensa abolicionista foi a porta de entrada para muitos afrodescendentes no mundo da formação de opinião.


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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