A influência africana na língua portuguesa


Em geral, os estudiosos das contribuições dos falares africanos no português brasileiro destacam duas grandes influências, provenientes de duas culturas africanas que predominaram durante os tristes anos do tráfico negreiro. São elas:

a) as línguas originárias dos povos de cultura banto, praticantes de idiomas que muito influenciaram a nossa maneira de falar o português, como o bacongo e o ovimbundo.

b) as línguas provenientes dos grupos culturais da África Ocidental, com destaque para um idioma formado por uma infinidade de falares semelhantes, que entre nós ficou conhecido como iorubá.

Ao contrário do que algumas pessoas pensam, o estudo dos falares populares é tão fundamental para o conhecimento de uma língua quanto a abordagem dos modos “cultos” de usar o idioma. Por esse motivo, é muito importante estudar as formas como os africanos utilizaram a língua portuguesa que aprenderam entre nós, porque daí saíram muitos usos linguísticos que estão no dia a dia, na oralidade dos brasileiros. Vamos conhecer alguns deles?

– Omissão da última consoante nas palavras: as formas infinitivas dos verbos são um bom exemplo. Os portugueses pronunciam muito claramente o “r” final dessas palavras e até acrescentam mais alguma coisa (exemplos: “falaire”, “dizere” etc.). Entre nós esses fonemas finais praticamente não são pronunciados e, quando o são, constituem uma flagrante exceção. Assim, basta observar a fala de qualquer brasileiro para percebermos frases como:

“Vou te dizê uma coisa” ou “Chega de falá nisso!”.

– A palatalização das consoantes “d” e “t” quando precedem a vogal “i”: o falar dos povos de origem africana popularizou por todo o país pronúncias como as que a maioria de nós usa em palavras como “dia” (djia) ou “artigo” (artchigo). Essa forma de falar se espalhou com tamanha intensidade que acabou por transformar-se na forma padrão do português brasileiro. A tal ponto que classificamos como falar regional ou sotaque a forma com que palavras com esse fonema são pronunciadas na maior parte de nossa região Nordeste, onde o uso preserva o falar típico dos portugueses.

Mesmo que algumas dessas formas não estejam de acordo com o emprego dito culto da língua, raríssimos são os brasileiros que não as pratiquem, seja qual for a classe social ou o nível de escolaridade. À forma de os africanos pronunciarem esses fonemas devemos esses traços tão característicos do falar nacional.

A África também foi de grande importância no processo de formação de alguns falares da língua portuguesa no Brasil. Um dos recursos através dos quais isso aconteceu é a Dissimilação, processo de mudança linguística em que há a troca de um ou mais fonemas, resultando em um diferente. A palavra “nego” (negro) é um bom exemplo. É conhecida dos estudiosos da língua portuguesa a dificuldade de alguns falantes de idiomas vindos da África de pronunciar certos grupos consonantais. O resultado, nesse caso, foi a supressão do “r”, provocando mudança no próprio radical, como se pode ver nos processos de derivação (negão, neguinho etc.). Oriunda da forma de falar popular, hoje transformou-se numa expressão nacional, inclusive nem sempre se referindo ao cidadão de origem afrodescendente.

Outro caso importante é aquele em que começou a ocorrer a figura da Aférese, que se dá quando há uma supressão de fonemas no início da palavra. São atribuídas aos falares africanos formas como “tá” (está), falada generalizadamente em todo o país, e “ocê” (você), muito praticada em algumas regiões brasileiras. A alteração nos ditongos “ei” e “ou”, processo conhecido como Redução, também atribuída à pronúncia de falantes africanos, é outro fato bastante presente em nosso cotidiano. Deu origem a pronúncias como “chero” em vez de “cheiro” e “loco” no lugar de “louco”.

Em um falar bem típico do homem do interior do Brasil ocorre o processo conhecido como Apócope, a supressão de fonemas, principalmente o “l” e o “r”, no final das palavras. São os casos de vocábulos como “generá” (general) e “mé” (mel), muito usados na fala espontânea de muitos habitantes de certas regiões do país, independente da escolaridade e do domínio da norma culta (mesmo muitos escolarizados pronunciam dessa forma).

Em outro processo muito comum na fala registrada pelo interior brasileiro encontramos termos como “muié” (mulher) e “oiada” (olhada), resultantes de Vocalização (no caso com a substituição do “lh” pelo “i”), processo que consiste em empregar fonemas nos quais predominam sons vocálicos no lugar daqueles que originalmente mantinham sons consonantais. Devemos a esse processo a própria forma de pronunciarmos o nome do nosso país: “Brasiu”, com “u” no final em substituição ao “l”, pronunciado de modo muito palatal pelos portugueses.

Como mais um exemplo de processos de formação de palavras influenciados pelas línguas oriundas da África, citamos a Ditongação, que representa a inclusão de uma semivogal ao lado de uma vogal já existente, formando um ditongo. Palavras como “mês” ou “paz”, que em muitos pontos do país se pronuncia como se houvesse a inclusão de um “i” (“meis”, “paiz”), são alguns exemplos. Alguns dos casos citados acima ocorrem com muita frequência na fala popular de áreas menos atingidas pela cultura urbana, o que em nada reduz seu valor linguístico, haja vista o que tais formas de expressão passaram a representar em termos estéticos, quando trabalhadas por nossos grandes expoentes da literatura. Aliás, é isso que vamos ver na coluna da próxima semana, quando vamos prosseguir com esse tema da influência dos falares africanos na língua portuguesa que empregamos no Brasil. Espero você na próxima semana.

 

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“Os malês e a diversidade africana no Brasil”


Por Sandro Gomes | Professor, escritor, mestre em literatura brasileira e revisor da Revista Appai Educar.


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